segunda-feira, 18 de agosto de 2008

4.

AGORA JÁ PERCEBERAM o "bolas", não é verdade? O Presidente já não era o Arbusto, nem mesmo um Arbusto, mas não podia estar ausente da Corrida. Nunca! Nem por sombras! E muito menos por causa duma coisa tão insignificante como o Primeiro Contacto, conversas com ETs que não contribuíam para arranjar melhores atletas para a Tona seguinte, ou pelo menos não directamente, e nem adiantavam nem atrasavam relativamente a esta, que estava prestes a começar. Sim, porque ninguém acredita mesmo em ETs armados de milagrosas armas de raios que são capazes de concretizar num instante o mais insignificante ou o mais grandioso dos desejos, pois não?

Pois.

Estar ausente era pedir para perder a reeleição. Como poderiam correr bem os seus campeões sem o estímulo constante que lhes era transmitido através dos amplificadores? Como seria possível, sem os slogans presidenciais de apoio à equipa, espalhados por toda aquela zona da cidade em ondas de trovejante palavreado, contrariar os gritos de incentivo que a populaça entregava aos adversários? Sim, porque a populaça, essa ralé, essa cambada de ingratos, torcia sempre por quem não estava no poder!...

Sempre!...

Que podia ele fazer? Haveria alguma dúvida?

— Senhor Embaixador — decidiu-se, enfim, o Presidente —, se não estiver muito fatigado, atrever-me-ia a convidá-lo a assistir à mais importante tradição do nosso planeta a qual, por incomparável coincidência, está mesmo quase a começar.

Os humanos presentes na sala entreolharam-se e ouviu-se um bruáá de conversas abafadas enquanto o tradutor automático estalava e zumbia em ultrassons. Algures, lá fora, um cão ganiu.

Depois disso, foi o embaixador quem estalou e zumbiu em ultrassons durante um tempo considerável, numa linguagem inaudível para os terrestres, mas que os seus aparelhos traduziam visualmente em bonitos mas totalmente incompreensíveis esquemas coloridos, cheios de inflexões e ritmos subtis.

Quando o extraterrestre se calou, o tradutor automático chamou a si as luzes da ribalta:

Rzfarrtum. Iá, meu. Bora! — disse.

O burburinho aumentou na sala, e vários dos presentes mudaram de cor, tentando conter o inconveniente riso que os tomava de assalto, escondendo os olhos dos de quem os rodeava, com medo de perder o controlo se por acaso nalgum desses olhos alheios encontrassem idêntica hilaridade. Houve quem pigarreasse, houve quem olhasse para as rachas do tecto (inexistentes), houve quem verificasse o aprumo dos sapatos formais de ténis, houve quem franzisse o sobrolho devido a falhas micrométricas descortinadas no verniz das unhas, e houve mesmo quem não se contivesse, quem não resistisse, quem se descaísse. As duas ou três gargalhadinhas abafadas que se chegaram a ouvir foram, no entanto, suprimidas de imediato com a ingestão de um desumorizador sacado à pressa e à socapa de bolsos secretos embutidos no cós elástico dos calções. E assim se manteve a dignidade da ocasião.

O Chefe de Protocolo, esse, talvez tivesse ingerido o desumorizador em casa, antes da cerimónia. Ou talvez não precisasse, talvez fosse naturalmente desprovido do sentido do ridículo. O certo é que se manteve impassível e limitou-se a esclarecer em voz átona:

— Mil perdões, Senhor Presidente. Obviamente, o aparelho está a necessitar de ser recalibrado. É só um momento. — Virou-se para a coisa de ar orgânico e disse com voz clara e pausada: — Vossa Excelência, Agtar do Ninho de Madeira Verde e Mastigada, perdoar-me-á, mas sou obrigado a levar o tradutor para calibração. É só um momento.

Depois de ouvir a tradução, o extraterrestre limitou-se a sacudir os braços superiores, num movimento rápido. O Chefe de Protocolo, com uma vénia, calçou um par de luvas grossas e agarrou no aparelho, resmungando para os seus botões enquanto se encaminhava para a porta:

— Espero que aquilo tenha sido um assentimento!...

O Embaixador ficou, pois, sozinho com o Presidente e com os restantes terrestres presentes na sala, sem quaisquer possibilidades de comunicação.

Passaram-se alguns minutos de algum desconforto, aproveitados pelos humanos para sussurrar circunspectamente coisas importantes ao ouvido uns dos outros, e para trocar sorrisos tímidos e acenos de circunstância. Ao Presidente, cada vez mais nervoso, tremia-lhe a perna esquerda, e as mãos não largavam a poupa, ajustando-lhe forma e grau de inclinação em movimentos compulsivos. Sempre que o seu olhar encontrava o pequeno extraterrestre, os lábios arreganhavam-se-lhe num sorriso breve, e a cabeça inclinava-se-lhe num leve aceno, independentemente da sua vontade, como se um e outro órgão estivessem em piloto automático.

E só podiam estar, porque o pensamento, esse, estava muito longe dali.

Nisto, um assessor de cerimónia (nome pomposo atribuído aos moços de recados presidenciais que substituíam as telecomunicações com grande desvantagem na eficiência mas com grande vantagem na capacidade de impressionar) assomou à porta, trocou com o Presidente um par de mensagens não-verbais, e quando este lhe fez um aceno, aproximou-se em passo enérgico e murmurou-lhe ao ouvido:

— Vai começar, Senhor Presidente.

Sem pensar, o grande líder arrancou na direcção da porta que o levaria ao dirigível que, segundo a tradição, servia de tribuna presidencial para a Corrida da Tona. Ao chegar à soleira, no entanto, caiu em si, hesitou, olhou para o extraterrestre, soltou um suspiro fraco mas audível naquela sala em que caíra um silêncio quase completo, fez um movimento hesitante, que pretendia ser um sinal para que o embaixador o acompanhasse, mas que nem foi compreendido pelo hoog nem por nenhum dos seres humanos ali presentes, voltou a hesitar e, por fim, já visivelmente irritado, perguntou em voz alta:

— Alguém sabe como se diz a esta coisa para vir connosco?

Ninguém disse nada. Mas mais desumorizadores foram sacados à pressa.

Chamem-me o Serra!

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