SERRA ERA O NOME por que era conhecido o Chefe de Protocolo. E, no momento em que o Presidente deu a sua ordem esganiçada, o Serra, objecto dessa ordem, encontrava-se no laboratório, num afã, lutando freneticamente contra a resistência do tradutor automático em ser recalibrado. Minutos mais tarde, quando o estafeta portador da ordem presidencial entrou esbaforido na sala, o Serra recitava o Canto Terceiro dos Lusíadas (Com Tingitânia entesta; e ali parece / que quer fechar o mar Mediterrano) para o filamento que servia ao tradutor de microfone, ou de bocal, e que se erguia de uma zona descolorida da coisa de aspecto orgânico e sem uma forma de que se pudesse dizer “Olha, parece-se com tal coisa”, ou “Tem assim a forma disto e tal”, que era a máquina propriamente dita. Esta, para variar, parecia satisfeita, traduzindo a velhíssima obra do poeta português há muito morto para um conjunto incompreensível de estalidos em ultrassom, cuja modulação era atentamente seguida por um batalhão de quinze técnicos e respectivos ecrãs e demais aparelhagem, toda ela reluzente de nova, toda ela retorcendo-se em volutas e espirais, como exigia a moda mais recente do design high-tech, inspirada em ilustrações antiquíssimas, a preto e branco ou em desfocados padrões de três cores, dos primórdios da Era das Revistas de Papel. Os técnicos é que não se mostravam lá muito satisfeitos, porque, tanto quanto eles eram capazes de entender os padrões linguísticos dos hoog, a tradução até podia estar a acontecer com grande suavidade, mas estava quase toda errada.
O estafeta parou à porta, respirando pesadamente, sem fôlego, e tentou pigarrear para chamar a atenção do Chefe de Protocolo Serra (Com nações diferentes se engrandece), mas sem resultado. Depois tentou a tosse (Todas de tal nobreza e tal valor), velho maneirismo de discrição que, embora fosse quase tão velho como as regras da boa educação, obteve resultado idêntico. Finalmente (Já foram, contra a gente Mahometa), dado o falhanço das tácticas indirectas, tentou o ataque directo sob a forma de um murmúrio:
— Senhor Serra...
— Raios te partam, criatura! Não vês que estou ocupado? Não vês que estou a meio duma operação delicada? Porra! — explodiu o Serra, esquecendo-se por completo de que o bocal do tradutor automático se encontrava ligado e atento mesmo em frente da sua fúria. O tradutor, a meio do processo de recalibração, totalmente ignorante quanto à pertença ou não daquelas palavras à velha epopeia decassilábica lusitana, pegou nelas e traduziu-as, integrando-as o mais harmoniosamente que lhe foi possível na versão em hoog d'Os Lusíadas, canto terceiro. Os técnicos, assustados pelo grito, com a atenção desviada dos seus monitores pela iminência de violência física que as palavras exaltadas deixavam entrever, nada notaram de invulgar.
— P-p-perdão, s-senhor — tartamudeou o estafeta, assustadíssimo — mas... mas Sua Excelência chama por... por... por Vossa Excelência.
— Arre! Que espere! — berrou o chefe de protocolo. Mas, depois de uma pausa em que só se ouviu na sala o som da sua respiração acelerada, achou por bem corrigir: — Não. Diz-lhe que vou já. Daqui a cinco minutos.
Afinal de contas, o “ele” ali implícito era o homem mais poderoso do mundo. Convinha ter algum cuidado...
Serra virou-se de imediato para o tradutor automático (que continuava a traduzir tudo, fazendo os possíveis por que esta conversa fizesse sentido como sequência para "tem o Galego cauto e grande e raro / Castelhano, a quem"), suspirou, e recomeçou a recitar o canto terceiro, em voz tensa:
— Portanto... "fez o seu Planeta / restituidor de Espanha e senhor dela; / Bétis, Leão, Granada, com Castela"...
segunda-feira, 25 de agosto de 2008
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