segunda-feira, 29 de setembro de 2008

10.

QUANDO A MANTA FINALMENTE chegou, Serra precisou da ajuda do estafeta. Havia que segurar no ET enquanto Serra desenrolava a manta num espaço que teria de abrir à custa de cotoveladas, mantendo tanto quanto possível um olho sobre o tradutor automático (que teria de ser abandonado no chão da barquinha, porque as quatro mãos que duas pessoas totalizam estariam ocupadas com o hoog e com a manta), não fosse alguém pisá-lo, pontapeá-lo ou dar cabo dele de outra qualquer forma mais criativa.

Mas não parecia haver estafeta nenhum nas redondezas. Serra olhou em volta, agachado, conseguindo apenas descortinar um mar de pernas enfiadas em tecidos berrantes. Chamou (Puto!), mas o barulho era tanto que teve dificuldade em ouvir o que saía da sua própria garganta. Esganiçou-se (Ó estafeta!), ao mesmo tempo que se punha em pé e se amaldiçoava por nunca ter perguntado ao outro como se chamava e ser, assim, obrigado a fazer aquela figura. Voltou a olhar em volta, já de pé. Ao primeiro varrimento, não o encontrou, mas ao segundo deu com uma cara branca como a cal (fora as nódoas de muco, claro está), com um olho escondido pela curvatura do nariz mas com um segundo olho visível e saltitante, deitando na sua direcção olhadelas rápidas como um relâmpago e regressando de imediato à tentativa de imitar os que o rodeavam. O estafeta tinha seguido a conversa com o ministro meio escondido nas imediações, imitando com talento auspicioso os movimentos dos subordinados do dirigente político, disfarçando como podia o pânico de ser por aquele associado a Serra, aquele desordeiro insubordinado, aquele anarca desrespeitador das hierarquias ou, nas palavras do próprio Furão, “aquele filibusteiro sem carácter”.

Só o Furão Caixa d’Óculos utilizaria uma expressão daquelas nos dias que corriam.

Ao localizar o estafeta, Serra nem perdeu tempo a chamar por ele: atirou-lhe uma mão, por cima de um trio ou um quarteto de ombros repugnados, encostando as nódoas da sua bata a um casaco de napa dourada, e provocando uma onda de protestos enquanto as pessoas das suas proximidades viam a atenção ser-lhes arrancada da corrida e se afastavam precipitadamente, indo esbarrar contra os vizinhos do outro lado. Serra não ligou. Limitou-se a agarrar firmemente no ombro do estafeta e a puxá-lo para si, gritando-lhe ao ouvido assim que o teve a jeito:

— Ai de ti se te tentares escapulir! Ouviste bem? Ai de ti! Faço-te em papa!

O estafeta engoliu em seco e acenou com a cabeça, balbuciando uma desculpa (que começava com um “não estava a fugir, doutor: fui empurrado e...”) e olhando fixamente para as nódoas de muco no peito da bata do outro, imaginando-se transformado numa coisa parecida e não gostando da imagem.

Serra puxou-o com mais força, gritando:

— Basta!

Foi quanto bastou.



A OPERAÇÃO (E A MANTA) DESENROLOU-SE com alguma dificuldade mas com sucesso e, depois de longos minutos de esforços e empurrões, o ET encontrou-se finalmente instalado sobre uma superfície opaca que o protegia da vertigem. A manta tinha vindo peluda, o que talvez não constituísse o colchão mais adequado para a pele pegajosa do alienígena e era provável que não lhe fosse muito confortável, mas fora o que se pudera arranjar assim de repente.

Por outro lado, ETs inconscientes não sentiam desconforto...

O passo seguinte seria mandar buscar lá abaixo meios de diagnóstico. O conhecimento biológico sobre o ET e sua espécie era ainda algo rudimentar e, por isso, mesmo que não fosse provável que o desmaio tivesse provocado lesões graves, era sempre aconselhável fazer um diagnóstico que fosse o mais exaustivo possível. Mesmo que o embaixador, agora que tinha a máscara correctamente colocada, respirasse de forma aparentemente normal, era da maior conveniência não correr riscos desnecessários. E embora a maior parte dos meios de diagnóstico disponíveis consistissem em aparelhos amanhados à pressa, frágeis, volumosos e pesando cada um largas dezenas de quilos, alguns havia que eram transportáveis.

— Puto — disse Serra para o estafeta, que tinha quase 30 anos de idade e aparentava alguns mais —, vais descer lá abaixo, vais-te meter no elevador e vais até ao laboratório do 5º piso, onde vais pedir para falar com a Joanina Grandelasca, uma técnica de segunda classe, alta e loura, que deve andar por lá. — Serra começou a rabiscar num papel enquanto continuava a falar. — Diz à Grandelasca para vir ter comigo, trazendo todas estas coisas, o mais depressa possível. Cuidado com o sintetizador, porque é tecnologia alienígena, não sabemos como funciona (e nem sequer sabemos lá muito bem o que faz) e só temos esse. Não o façam dar muitos solavancos, que pode ter sido isso o que fez com que aqui o tradutor desatasse a babar-se desta maneira — Serra lançou uma olhadela ao tradutor automático, que se mantinha no chão, rodeado duma poça de muco acastanhado que, pelo menos aparentemente, não estava de momento a alastrar. O Chefe de Protocolo entregou o papel ao estafeta:

— E despacha-te.

O estafeta murmurou um assentimento e desapareceu no meio da multidão. E Serra ficou ali, sem nada para fazer de momento a não ser tentar manter as altas figuras do Estado afastadas do alienígena.

Mas isso era uma tarefa mais árdua do que se poderia pensar.

É que as altas figuras do Estado não paravam quietas um momento. A Tona continuava a desenrolar-se lá em baixo, e sempre que havia a mínima alteração nas posições relativas dos concorrentes a multidão ululava, mulheres davam gritinhos e batiam palmas, aos saltinhos, jovens e velhas por igual, homens pregavam grandes palmadas nas costas uns dos outros, enquanto se riam em grossas gargalhadas ou lançavam insultos aos corredores, de faces e pescoços vermelhos de fúria. Agrupavam-se sectores em torno dos principais candidatos. O mais ruidoso e mais bem-disposto era, ainda e cada vez mais, o do Meneres, cujo principal campeão, o Hermínio Eiró, seguia na frente da corrida, isolado e já com grande avanço. O Meneres tinha, ainda por cima, mais dois corredores no grupo que perseguia o segundo classificado. Este era João Machadão, uma surpresa naquela posição, correndo com as cores laranja e cor de rosa do candidato Faneco, que já se candidatava pela sexta vez e nunca tinha conseguido chegar sequer perto de ser eleito. Parecia que desta vez tinha tido acesso a algum esteróide novo, porque não só Machadão seguia isolado em segundo lugar, como os restantes atletas da sua equipa iam também bem colocados e com um ar de à-vontade que deixava antever a possibilidade de recuperação de algumas posições mais para o fim da corrida. Ediberto Faneco era, portanto, o centro de outro grupo animado, se bem que bastante reduzido. Mesmo assim, já tinha crescido para cerca do dobro desde que o dirigível levantara voo dos terraços do Palácio.

Quanto ao ainda Presidente, deixara de gritar e seguia a corrida com o ar melancólico e infeliz dos perdedores antecipados, no que era imitado por toda a sua comitiva (que se rarefazia a cada minuto), o que provocara uma diminuição muito significativa no barulho que se fazia sentir dentro da barquinha. Não era caso para menos: Joaquim do Fim arrastava-se na cauda do grupo dos terceiros, ameaçando descolar a qualquer momento, com um ar de fadiga tão absoluta que até era visível do dirigível a olho nu, e o segundo elemento da equipa presidencial vinha duas posições mais atrás, separado daquele grupo pelo primeiro atleta de um candidato menor e por muitos, muitos metros, parecendo não ter qualquer hipótese de se chegar à frente em tempo útil. Já não parecia restar a mais pequena esperança de reeleição, e conversava-se em torno do Presidente em murmúrios que, apesar de murmurados, já se conseguiam ouvir, tamanho era o silêncio naquela zona, em vozes cujo tom oscilava entre o preocupado, o calculista e o desesperado. Perto de Serra, dois membros menores do governo culpavam em vozes conspiratórias a farmacêutica presidencial. Desenrolavam a lista completa das teorias da conspiração; falavam de lotes de comprimidos passados do prazo de validade e reembalados, de sabotagens nas concentrações de reagentes, de subornos e corrupções de todo o tipo, de denúncias anónimas mas muito fidedignas, de incompreensão (ou talvez compreensão demasiado clara) perante a ineficiência da polícia, da eventualidade de impugnar o resultado da Tona, do futuro e do seu, deles, lugar nele, aparentemente vago. Ao mesmo tempo que conversavam, os olhos teimavam em fugir-lhes para um dos grupos mais animados, e deixavam repousar neles, por momentos, olhares avaliadores. Nessas alturas, quase se podiam ver naqueles olhares os cálculos sobre as presenças e ausências dos prováveis futuros líderes da nação, e sobre as suas próprias possibilidades de uma mudança de campo, rápida, discreta e definitiva.

Serra estava-se mais ou menos nas tintas. Fosse qual fosse o presidente, a política pouco ou nada se alterava porque, por qualquer motivo que nunca conseguira compreender, os presidentes tinham uma preocupação obsessiva pelas sondagens e evitavam até extremos ridículos ir contra a opinião maioritária do público que, por sua vez, e multiplicando o surrealismo de tal preocupação, era cuidadosamente condicionada pelos meios de comunicação. Ficara na história, como anedota, o dia em que o Presidente Tainha assinara, em rápida sucessão, dois decretos contraditórios acerca de um imposto sobre construção em zonas delimitadas. Tainha decidira aumentar o imposto de um para um vírgula três por cento, a fim de tentar contrariar uma situação calamitosa nas finanças públicas, e assinou o decreto, enviando-o de imediato para publicação (que já nessa época era praticamente instantânea). Mas, assim que viu o resultado da sondagem-relâmpago realizada logo depois, mostrando uma opinião pública esmagadoramente contrária a tal medida, chamou toda a gente ao seu gabinete, exigiu ideias imediatas para resolver o problema, e acabou por assinar um decreto complementar que dizia que embora o imposto fosse aumentado para um vírgula três por cento, na realidade permaneceria em um por cento. Sem dar ouvidos àqueles que o aconselhavam a encontrar uma redacção mais coerente para a medida (e que pouco tempo ficaram nos seus cargos, em breve substituídos pelos que elogiaram profusamente a “superior capacidade presidencial para encontrar saídas mesmo nas situações mais impossíveis”), Tainha enviou também este segundo decreto para publicação. Seguiram-se décadas que pareciam feitas de encomenda para os advogados, que retorciam estes dois instrumentos legislativos segundo a conveniência do momento, dando predomínio a um ou a outro, embora (e porque) ambos fossem inteiramente válidos. Apesar de ter sido transformado em anedota pelo povo, o acto do Presidente Tainha causou um impacto tremendo nas instituições. Por um lado, fez jurisprudência e acabou por servir de precedente para inúmeros processos. Por outro lado, criou também um precedente para o poder legislativo, que todos os deputados, governadores, presidentes disto e daquilo e líderes menores se apressaram a seguir sempre que queriam ter uma lei que regulamentasse as coisas de tal forma que os deixasse livres de fazer o que muito bem entendessem, com pelo menos uma interpretação possível que tornaria legal fosse o que fosse. Por um terceiro lado, o acto foi considerado, pelas associações profissionais dos advogados e afins, um marco de altíssima relevância e significado, o que fez com que fossem atribuídas a Tainha as mais elevadas honrarias jurídicas do Estado, após a sua derrota na Tona seguinte.

Serra estava-se nas tintas, também, porque não havia, no país ou fora dele, quem se lhe comparasse na capacidade técnica em lidar com os hoog. Mais importante ainda, visto que o Inferno estava cheio de técnicos altamente competentes preteridos a favor de técnicos incompetentes mas dóceis, coisa que ele decididamente não era, não havia quem se lhe aproximasse no grau de confiança conquistado junto daquele hoog específico e, através dele, de toda a sua espécie. Os anos de liderança do programa SETI eram uma mais-valia insubstituível, e os meses gastos na comunicação com a nave hoog enquanto esta fazia a última aproximação à Terra eram ainda mais valiosos.

Serra estava-se nas tintas, por fim, porque era de sua natureza estar-se nas tintas para os políticos e os seus jogos de poder. E a natureza é a natureza...

Por isso, para Serra, ganhasse Fulano ou Sicrano o resultado era o mesmo: pleno emprego, salário elevado, influência ao mais alto nível do Estado e muito que fazer. Até dava, lembrou-se Serra com um sorriso, para atirar ordens a carreiristas enfatuados como o Furão Caixa-d’Óculos.



ESTAVA O CHEFE DE PROTOCOLO a divagar sobre estes assuntos, com um leve sorriso no rosto, enquanto uma pequena fracção do cérebro ia gerindo o afastamento de todos os que se aproximavam demasiado do ET, quando se viu interrompido por um homem alto e impecavelmente vestido, cada fio de cabelo milimetricamente colocado no sítio certo através de um sofisticadíssimo (e caríssimo) sistema de biofixador, daqueles que deixavam o penteado com um aspecto inteiramente natural ao mesmo tempo que esculpiam discretamente, em zonas bem visíveis da cabeça, o logótipo da marca. Serra reconheceu-o de imediato. Tratava-se de Adalberto Miguel Escolápio, ministro da ciência e tecnologia do actual governo e há muito tempo ligado por vínculos fortes ao actual presidente, ocupando sempre cargos de grande importância e visibilidade mesmo apesar de insistentes rumores que o acusavam de ser um bêbedo inveterado, que mantinha o seu visual sem mácula à custa de regeneradores de auto-imagem, outro item de alta tecnologia só ao alcance dos extremamente ricos.

Os boatos são o que são, não há nada a fazer.

O facto de ele entaramelar a fala, especialmente ao fim do dia, não queria dizer nada.

Escolápio agachou-se ao lado de Serra, balançando ligeiramente, e entaramelou conversa:

— B’a tarde, ilustre Serra — brincou. — C’mo vão as coisas aqui c’o nosso pequeno amiguinho?

— Como está, Senhor Ministro? Parece estar razoavelmente sob controlo. O hoog respira com regularidade e só estou à espera que cheguem uns aparelhos que mandei o meu assistente ir buscar lá abaixo para tentar reanimá-lo. Não prevejo dificuldades de maior, mas nunca se sabe.

— Bom, bom. E o trad’tor? Já tá bom?

— Ah... o tradutor... — Serra relanceou os olhos pelo aparelho, que permanecia adormecido no chão, com o bocal recolhido, aparentemente sem segregar mucos coloridos — Sabe? Não sei bem. Tem produzido umas substâncias estranhas, mas pelo menos parece estar a traduzir convenientemente as conversas, que é o que é mais importante.

— Bom, bom — repetiu o ministro. E, após uma pausa, olhou para o Chefe de Protocolo com um olhar estranho e perguntou: — Serra, nós sempre fomos bons amigos, n’é verdade?

Serra não percebeu. Que queria aquele com aquela conversa?

Decidiu ser cauteloso:

— Nunca tive qualquer sinal de que não o fôssemos, Senhor Escolápio.

— Bom, bom — repetiu uma vez mais o ministro. — Podes tratar-me po’ Ada’berto.

Serra ficou a olhar para ele, sem responder e sem se comprometer. Aquela conversa estava a tomar caminhos muito esquisitos.

— Pois. Ada’berto. — murmurou o ministro. E continuou — É bom sabe’mos que podemos contar c’os amigos numa altura d’fícil como esta.

Escolápio olhou de forma penetrante para o interlocutor. Serra continuava sem perceber nada. E como continuava sem perceber, continuava cauteloso:

— Sim, suponho que seja sempre bom poder contar com os amigos.

O ministro pareceu desapontado, mas insistiu:

— Esp’cialmente numa altura d’fícil como esta.

O Chefe de Protocolo olhou com atenção, por um momento, para o outro, que o brindava com o mais sedutor dos sorrisos. Continuava sem perceber grande coisa, mas sabia que a “altura difícil” tinha começado havia muito pouco tempo, visto que quem estava agora agachado na sua frente tinha produzido um inflamado discurso na noite anterior, transmitido por todas as cadeias noticiosas (até mesmo as interactivas), em que submergira a audiência com uma autêntica catarata de adjectivos optimistas e elogiosos relativos à situação da nação, à actuação do Presidente e, muito em particular, à gestão do seu ministério, que tinha sido tão extraordinária, dizia ele, que até tinha conseguido trazer ao planeta a suprema honra de acolher o primeiro contacto de nível diplomático entre a Humanidade e uma espécie inteligente proveniente de outras paragens do grande Universo.

Que o hoog tivesse abandonado o seu planeta cerca de trinta anos antes de Escolápio ter nascido foi coisa que não abalou um micrómetro a auto-satisfação do ministro.

Ou seja, a “altura difícil” devia ter começado já depois do início da Corrida da Tona...

— O Senhor Ministro refere-se à Corrida da Tona? — perguntou, cautelosamente, o Chefe de Protocolo.

O sorriso do outro tornou-se radioso.

— Ah! Vejo que nos ent’demos! Posso ‘tão contar com o meu amigo?

Entendemo-nos?!, perguntou Serra a si próprio, espantado. Eu cá não entendo é coisíssima nenhuma. Que será que este quer?

Felizmente, havia sempre o recurso às velhas fórmulas, aperfeiçoadas ao longo de milénios de prática intensiva da duplicidade humana.

— Farei tudo o que estiver ao meu alcance, Senhor Ministro. Tudo o que estiver ao meu alcance — disse Serra com um sorriso.

O outro pareceu, por um breve momento, não ter ficado muito satisfeito com a resposta, mas rapidamente abriu o sorriso ainda mais, deixou cair um par de palmadas no ombro do Chefe de Protocolo (ombro esse que era das poucas zonas relativamente limpas da sua indumentária) e exclamou:

— Bom, bom!

Acrescentando um “’tão bom tr’balho!” enquanto se punha de pé, passava uma mão cuidadosa a milímetros da madeixa e desfazia os vincos do blusão de basebol de cerimónia que envergava (um Armandini, aparentemente). De seguida fez um aceno amigável a Serra e virou costas, abrindo caminho entre a multidão e dirigindo-se na direcção genérica do ruidoso grupo do Meneres.

Serra era algo distraído com as relações mundanas. Era a única explicação possível para o ar de espanto com que seguiu a retirada do outro.

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