segunda-feira, 22 de setembro de 2008

9.

APESAR DO SUOR, das secreções do aparelho e de um leve mas indisfarçável tremor nas pernas que lhe causava fraqueza, o chefe de protocolo Serra acabou por conseguir atingir o dirigível sem novidade de maior e com todo o material intacto, quer o alienígena, quer o terrestre. Até mesmo o apavorado estafeta foi capaz de se alçar até à barquinha e aí cair ao chão, luzidio de suor, branco como a neve, à excepção de uma zona na bochecha esquerda e outra na testa onde se desenhavam, num cor de rosa que se esbatia lentamente, negativos do padrão antiderrapante das botas do Chefe de Protocolo Serra.

Quanto a este, a primeira coisa que fez assim que chegou foi olhar para o tradutor automático e fazê-lo girar entre as mãos, à procura de alguma mossa que tivesse eventualmente aparecido com os apertões a que a máquina fora sujeita durante a subida. Não viu nada de especial, além das secreções que agora começavam a tomar um tom lilás com veios verde-alface. Serra, ainda alheio ao ambiente, mas começando a perguntar a si próprio se aquele padrão de cores teria algum significado comunicacional, apertou uma determinada zona do tradutor, o que teve como consequência que o filamento que servia de microfone se erguesse em frente dos seus olhos. Tirou do bolso um microgravador e fê-lo reproduzir um conjunto de apitos quase demasiado agudos para os ouvidos humanos ou, melhor dizendo, quase totalmente inaudíveis, visto que só os tons mais graves daquela gravação faziam algum efeito nos tímpanos de quem os escutasse. O tradutor automático estremeceu, excretou duas golfadas de muco roxo e traduziu, fielmente: Estavam pelos mouros temerosas / E de um alegre medo quase frias / Rezando as mães, irmãs, damas e esposas. Serra acenou, mais ou menos satisfeito. Se não ligasse àquelas secreções nojentas, a coisa parecia estar a funcionar perfeitamente. Os cantos da boca do chefe de protocolo ergueram-se um milímetro, num suspiro virtual de alívio. E só então deixou, finalmente, que o ruído e o resto do que o rodeava lhe penetrasse o isolamento. Olhou em volta, identificou a área geral onde ficava o seu objectivo e pôs-se a caminho.

A multidão que se acumulava junto do ponto de amarração da corda era espessa. Serra teve de furar por entre um mar de multicoloridos casacos de cerimónia, com a sua simples e muito suja bata branca a destoar violentamente das cercanias, se bem que as nódoas de muco até que jogassem bem com a pujança cromática do que o rodeava. Serra era seguido de perto pelo ainda pobre mas agora um pouco menos assustado estafeta, que lhe segurava numa aba da bata com medo de perder-se e ficar esmagado por baixo daquela multidão indiferente. O chefe de protocolo furava de cabeça baixa, segurando o tradutor automático por forma a que os braços protegessem os flancos da máquina e as mãos a parte dianteira, mas tentando evitar que o aparelho tocasse na bata, no que não era inteiramente bem sucedido. De vez em quando, sempre que o encontrão era mais forte, o aparelho lá se esborrachava contra o seu peito, deixando na bata mais uma nódoa de contornos irregulares que se dispersava um pouco e se fundia com nódoas anteriores, transformando a vestimenta do chefe de protocolo num quadro abstracto quase tão multicolorido como os casacos que se estendiam em volta como ondas de um mar de cores primárias, o que o fazia, por vezes, desaparecer de vista num mimetismo que só não era perfeito porque as costas da bata permaneciam imaculadamente brancas. Claro que Serra se vingava dos encontrões sem grandes contemplações. Sempre que recebia um mais forte, engolia o impropério que lhe vinha ao cérebro, mas não se coibia de encostar dissimuladamente a zona mais repleta de muco da sua anatomia — geralmente as mãos — ao distraído. E assim foi furando através da multidão até chegar à zona central, deixando atrás de si um rasto de muco alienígena em casacos, calças, blusas, vestidos e até caras, mãos e vozes indignadas que comentavam com os vizinhos o desplante e a falta de cuidado de tal personagem, e cochichavam perguntas: quem é? O caro amigo conhece?

A zona central era onde se concentravam os dignitários mais importantes e onde o ruído era mais ensurdecedor. Candidatos berravam pelos seus campeões, procurando incentivá-los mesmo através da espessura do diamante que compunha todo o casco da barquinha, mesmo sabendo que nem um milibel chegaria lá abaixo porque o microfone unidireccional do sistema sonoro do dirigível estava, como era da praxe, nas mãos do Presidente. Na periferia desta massa de políticos, agrupavam-se os comentadores, orgânicos ou não, de uma miríade de órgãos de comunicação social, que por sua vez faziam os seus relatos quer da própria corrida da Tona, quer da ocasião social que esta proporcionava, sempre em vozes artificialmente entusiasmadas, procurando transmitir aos seus espectadores, ouvintes e sensoriadores toda a emoção da ocasião. Ou mais alguma, se fosse possível, pois as audiências modernas não perdoavam uma interrupção que fosse na catadupa histriónica de palavras e imediatamente mudavam de canal. Davam-se entrevistas, disparavam-se flashes de micro-câmaras de fotovídeo, soltavam-se gargalhadas, rosnavam-se insultos a adversários e respectivos partidários.

Estava tudo normal, portanto. Não havia qualquer sinal óbvio da presença de um embaixador extraterrestre ali, entre os líderes terrestres e as respectivas manadas de bajuladores. Serra começou a ficar intrigado, enquanto à força de desculpes, com licenças e discretas cotoveladas (ainda que por vezes dolorosas para as vítimas — ainda se ouviu um ou outro gritinho de dor) ia atravessando este sector mais selecto da multidão, protegendo como podia o tradutor que salivava agora abundantemente num tom de verde purulento, evitando dar muito nas vistas e evitando também, naquela zona, tocar com alguma parte menos higiénica da sua anatomia num casaco de napa, numa écharpe de plástico ou num vestido de nylon, artigos em que o luxo de serem obviamente derivados do petróleo, o líquido mais escasso do planeta, ostentava a opulência das contas bancárias. Mesmo com todos os cuidados, Serra não evitou deixar também ali um rasto de conversas, esgares enojados e um ou outro vómito mal reprimido. Isso preocupava-o um pouco (nunca era boa ideia desagradar a possuidores de megadoleuros), mas a sua preocupação principal era com o embaixador. Que teria acontecido ao hoog? Não estaria ali? Tê-lo-iam deixado lá em baixo, algures, eventualmente sozinho? Que desgraça teria aquela manada de idiotas endinheirados provocado na probabilidade de futuras relações amistosas de proveito mútuo entre os hoog e os humanos?

Quando Serra conseguiu, enfim, chegar perto do sector presidencial, deparou com um círculo irregular de dignitários profundamente absorvidos na corrida, sem prestar qualquer atenção ao que se encontrava no centro do círculo. A existência de um espaço vazio num sítio daqueles só podia significar uma coisa, e o Chefe de Protocolo já contava com o que ia encontrar quando os seus olhos deram com o corpo caído e imóvel do ET. Mesmo assim estacou, levando o estafeta, que vinha distraído com o que se passava por baixo dos seus pés (naquele momento um pequeno grupo de corredores procurava destacar-se do pelotão, e só um deles — o Joaquim do Fim — fazia parte da equipa do Presidente), a esbarrar contra as suas costas. Serra resmungou um insulto quase inaudível, mas até poderia tê-lo berrado, que ninguém estranharia. Ali todos gritavam, virados para baixo e, sobre a cacofonia reinante, a voz do Presidente, bem timbrada por anos de discursos inflamados, gritava mais que todos, ora insultando os seus corredores (pedaços de asno, que estão a ficar para trás!), ora incentivando-os (mexam-me essas peidas, parvalhões!), ora tecendo comentários depreciativos em relação aos adversários (até aquele gorila a rebentar de banha da equipa dos comunas do Meneres corre mais que o Freitas, raios o partam!), ora ameaçando o seu seleccionador com um futuro tenebroso (quando puser as mãos no Morais, vai desejar nunca ter saído de dentro da cadela da mãe!). Ao dar-se conta do tom presidencial, Serra engoliu em seco. Ali, naquela dezena de metros quadrados, estava concentrada uma quantidade impressionante de más notícias.

Depois de fazer mais uma vez uso dos cotovelos, se bem que agora com maior suavidade e discrição, por motivos óbvios, o Chefe de Protocolo agachou-se junto do extraterrestre. Estava num estado lastimável. Os braços superiores tinham-se transformado em flácidos pedaços de carne azul, os inferiores e os intermédios apresentavam-se recolhidos, quase invisíveis, de encontro ao corpo, das glândulas de muco do pescoço saía uma gosma arroxeada que ia formando lentamente uma poça opaca no chão translúcido, e a crista pendia, espalhando-se no chão em desordem, desinflada e baça como um balão vazio. O embaixador respirava aos solavancos, com o filtro atmosférico mal ajustado, deixando que entre a atmosfera terrestre e as suas próprias necessidades gasosas se produzissem trocas que não podiam ser saudáveis para ninguém.

Serra murmurou um merda! e perguntou em voz alta, passando olhos muito mal-humorados pelas caras dos membros menores da comitiva presidencial:

— Que se passou aqui?

Ninguém lhe deu resposta. As caras que o rodeavam enrubesciam e empalideciam ao compasso da corrida, esbugalhavam-se em paroxismos de emoção, amarfanhavam e alisavam pequenos papéis amarelos onde as apostas que tinham feito sofriam em silêncio as consequências de tudo o que os atletas iam fazendo, lá muito em baixo. E as bocas berravam incitamentos, revezando-se umas às outras como altifalantes numa estafeta sonora.

Serra teve de repetir cinco vezes a pergunta, num tom cada vez mais alto, cada vez mais rouco, cada vez mais esganiçado, para que um dos secretários de estado reparasse nele, fizesse um aceno impaciente, abanasse o Presidente e lhe dissesse qualquer coisa ao ouvido. Este olhou o Chefe de Protocolo com olhos vazios. Obviamente, não estava a perceber que raio de coisa era aquela que o tinha arrancado bruscamente a um dos momentos mais decisivos da sua vida, o momento em que o Joaquim do Fim se tentava isolar no comando da corrida, seguido de perto por três adversários de outras tantas equipas, mas deixando para trás um grupo maior, repleto das camisolas azuis às bolinhas cor de rosa da equipa do Meneres.

— Ah, Serra — resmungou por fim o homem mais poderoso do planeta, ao mesmo tempo que os olhinhos, minúsculos e muito juntos, se lhe iluminavam em reconhecimento. — Que caraças quer você? Não vê que estou ocupado, com um raio que o parta?

— Peço imensa desculpa, Senhor Presidente, mas necessitaria de algumas informações sobre o que aconteceu ao nosso embaixador, aqui caído.

O presidente relanceou os olhos pelo alienígena, franzindo a testa.

— Ah, isso? Não percebi nada. Quando o dirigível começou a levantar voo desatou a mexer-se e depois caiu e deixou de mexer-se. Não sei mais nada. Pergunte ao Zé. Zé! Presta aqui atenção a este sujeito. E você, não me chateie mais.

O Zé, isto é, o Dr. José Mendes, era o ministro dos negócios estrangeiros, ali em algo de semelhante a um vazio legal e sem saber bem qual o seu papel, visto que a legislação era omissa quanto à exacta natureza dos extraterrestres, isto é, se eles se podiam ou não considerar estrangeiros à luz das leis que regem o funcionamento do Estado. Era um homem pequeno, de cabelo cortado de forma a parecer careca, com a cara coberta por uns anacrónicos e gigantescos óculos de lentes grossas, e uma postura e atitude que transpirava formalismo em cada movimento. O Zé estava profundamente convicto de que tinha nascido na época errada (e dizia-o sempre que podia, especialmente aos mais íntimos, que por esse motivo fugiam dele). Historiador de formação e vocação, fascinado pelas estruturas políticas de meados do século XX, procurava imitar em cada gesto os grandes homens do passado como se através da imitação alguma da grandeza daqueles vultos se transmitisse ao seu corpo franzino. O mundo, para ele, era uma imensa pirâmide hierárquica regida por parágrafos e artigos, normas e regulamentos, leis e decretos e, acima de tudo, pela palavra do chefe, fosse este qual fosse. Era completamente imprestável se entregue a si próprio, mas muito útil para quem mandasse nele, porque dizia que sim com entusiasmo a todas as ideias dos superiores, fazendo ao mesmo tempo a vida negra a qualquer indivíduo de um nível inferior ao que ele julgava ter na escala hierárquica, e que tivesse o desplante de expressar ideias próprias. Um perfeito pau-mandado.

A situação era incómoda para ambos: Serra, como Chefe de Protocolo, era subordinado ao ministro dos negócios estrangeiros. Mas, dado o vazio legal do Primeiro Contacto, este sabia-se em desvantagem perante o antigo cientista a quem a situação atribuíra amplos poderes. Por seu lado, Serra já tinha sido chamuscado várias vezes nos seus contactos com o “Furão Caixa-d’Óculos”, como o ministro era comummente conhecido, e tinha por isso uma enorme má vontade relativamente ao Furão e uma reserva cautelosa que não o deixava ser ele próprio. Por tudo isto, Serra, ao ver o outro aproximar-se com uma maleta de couro sintético na mão, passando a mão pelo cabelo artificialmente rarefeito, transformou o corpo num ponto de interrogação vestido de branco (embora com muitas nódoas), reduzindo a sua altura a algo de mais próximo à do ministro, ao mesmo tempo que evitava debruçar-se para ele naquilo que se poderia assemelhar a uma espécie de intimidade confidente, coisa de que fugia com todas as forças. Por seu turno, o ministro foi-se chegando com o seu característico andar saltitante, e quando parou pôs-se literalmente em bicos dos pés, deitando olhadelas de relance para o tradutor automático, ao mesmo tempo que dizia em tom glacial:

— Sim?

— O senhor doutor perdoe, mas a fim de evitar um incidente interstelar com a potencialidade de tornar-se grave, necessito saber com urgência e exactamente o que se passou com este nosso convidado aqui caído. Se o senhor doutor não se importa...

— Bem... — hesitou o ministro — não sei se posso... Sua excelência não me deu ordens para...

— Com o devido respeito — interrompeu o Chefe de Protocolo — julgo que o Senhor Presidente deu ordens específicas para me serem prestadas as informações necessárias. E eu preciso de saber com toda a urgência o que se passou aqui.

Ao ouvir aquilo, não tanto pelas palavras em si, mas por ter sido interrompido, o ministro estremeceu. Depois pôs-se muito direito e muito vermelho, esticou ainda mais os pés até quase ficar em pontas e declarou, tentando pôr na voz todo o peso de uma dignidade aristocrática ofendida, e uma frieza verdadeiramente polar:

— Meu caro senhor. Prestar-lhe atenção não é responder-lhe a todos os caprichos. Não é responder-lhe a todas as perguntas que me queira fazer. Com certeza compreenderá que há assuntos que devem manter-se sigilosos, dentro das quatro paredes dos gabinetes do Estado (e este dirigível, como sabe, pode considerar-se, para todos os efeitos previstos na lei, uma extensão administrativa do Palácio Presidencial, conforme o texto do decreto-lei nº 27/45 de 7 de Novembro), e não podem ser comentados com indivíduos desprovidos dos necessários certificados de segurança, sob pena de comprometer a segurança da nação. Assim sendo, e como compreenderá, não posso, apesar de toda a minha boa-vontade, dar-lhe as informações que me pede sem ordens expressas nesse sentido. Queira desculpar.

Serra manteve-se calado, com crescente dificuldade, ao longo deste discurso. Sabia que se tentasse interromper de novo o Furão, se fizesse sequer tenções de abrir a boca, só pioraria a situação. Mas quando se chegou à parte do “queira desculpar”, o Chefe de Protocolo esboçou um sorriso involuntariamente cínico e disse, com toda a suavidade:

— Bem, então pergunte-lhe.

— Como?!

— Pergunte ao Presidente se me pode ou não confiar os segredos que a nação tem a respeito do ET. Ele está mesmo ali, pergunte-lhe.

— Mas...

— Desculpe a franqueza, doutor, mas estamos a perder tempo precioso. Se o caro amigo não pergunta, pergunto eu.

O ministro ainda abriu a boca para balbuciar um protesto, mas pensou melhor e cerrou os lábios. Olhou para o presidente, que nesse momento berrava algo pouco compreensível e, decerto, nada edificante, enquanto lá em baixo o Joaquim do Fim ficava irremediavelmente para trás (e os repórteres já murmuravam para os seus transcritores automáticos manchetes cheias de trocadilhos brilhantemente inovadores acerca do Joaquim, o do Fim, se preparar para ser isso mesmo para as aspirações de reeleição daquele presidente, seguindo com absoluta fidelidade e nenhuma originalidade uma longa tradição de manchetes entrocadilhadas na imprensa de referência, em vigor pelo menos desde que esta emergiu dos antigos tablóides). As coisas pareciam sorrir cada vez mais ao Meneres, aquele que na suprema opinião do primeiro cidadão da nação era um porco, um comuna rico, um casca-grossa insuportável, uma besta quadrada. Ele e todos os demais, é bem de ver. Uma corja de incompetentes comunistóides e imbecis, cujo único objectivo na vida era conquistar o poder, o poder que lhe devia pertencer por direito a ele, e só a ele, cambada de gatunos! O ministro José Mendes, por seu turno, franziu o sobrolho, olhou para baixo, rosnou uns quantos impropérios à “besta quadrada” num acto reflexo de subserviência praticamente inconsciente, voltou a olhar para o presidente, cada vez mais vermelho, cada vez mais descomposto (mas ainda impecavelmente penteado — um presidente pode fazer o que quiser menos cometer o suicídio político de deixar-se despentear), e tomou uma decisão:

— Que quer você saber?

Serra suspirou de alívio.

— Tudo. Quero saber qual foi a sequência exacta dos acontecimentos que levaram ao colapso do hoog, quem fez e disse o quê e quando e quais foram as reacções do ET.

O Furão voltou a suspirar, relanceando mais um olhar pelo seu chefe. Mas respondeu.

— Nada. Não se passou nada. O Senhor Presidente e respectiva comitiva embarcaram no dirigível, seguidos pelo Senhor Embaixador, que não se mostrava mais estranho do que o habitual... como deve compreender, não temos muita informação sobre aquilo que é normal no comportamento dos indivíduos da espécie do Senhor Embaixador, e portanto a conjuntura não permite que formemos conclusões mais sólidas que isto. O Senhor Embaixador teve alguma dificuldade em entrar na barquinha...

— Que tipo de dificuldade?

— Bem... parou, contorceu-se um pouco e depois entrou, devagar. Isto na altura foi atribuído por Sua Excelência e por toda a sua comitiva à pequenez das pernas do Senhor Embaixador. Um dado curioso é que os cães das redondezas começaram a ganir e ladrar nesse momento, mas ter-se-á decerto tratado de uma coincidência. Enfim, como eu ia dizendo, parecia estar tudo bem quando, pouco depois de levantarmos voo, no momento em que todos conseguimos finalmente ver para além do parapeito do terraço e começar a observar os corredores da Tona, lá em baixo, o Senhor Embaixador pareceu desfalecer duma maneira que não podemos saber se é normal ou não, como compreenderá, e até porque essa competência não é nossa — e aqui o ministro enviou um olhar de esguelha ao Chefe de Protocolo —, começou a fazer ruídos graves que ninguém conseguiu compreender, agitou-se muito, e depois caiu na posição que ali vê. Nenhum de nós se atreveu a tocar-lhe com receio de causar algum problema irremediável. Sua Excelência gritou muito por si, só falava no Serra, era Serra para aqui, Serra para ali, mas não havia Serra nenhum — neste ponto o ministro fez uma pausa, olhando de novo de lado, com ar reprovador, para o Chefe de Protocolo, como quem não quer dizer nada, por uma questão de delicadeza, mas sabe, e sabe que o interlocutor também sabe, que a culpa é integralmente dele, interlocutor — e por isso, como o Senhor Embaixador se mantinha obviamente vivo, foi decidido num rápido Conselho de Estado deixar estar as coisas como estavam e esperar que você chegasse. Se chegasse — mais uma olhadela reprovadora. — Entretanto, com as emoções da Tona (e parece que infelizmente vamos perder desta vez... é uma tragédia para a nação, uma tragédia!...), acabámos por nos esquecer do Senhor Embaixador até que você chegou vestido dessa forma imprópria e começou a fazer perguntas.

Ou seja, pensou Serra, trocando por miúdos: tinham levado o ET para ali, tinham-lhe provocado um colapso com um choque de pânico e agora preparavam-se para lhe atribuir as responsabilidades a si.

Lindo!...

E típico.

Só havia uma coisa a fazer: tentar reanimar o extraterrestre. Coisa que nem valia a pena pensar em fazer enquanto o hoog se mantivesse, segundo o seu ponto de vista de ser subterrâneo, suspenso do ar a uma altitude impensável, sem qualquer apoio, acima de um chão que só esperava que ele se despencasse a uma velocidade que crescia à proporção directa da aceleração da gravidade daquele planeta, ainda maior que a do seu, para acabar esborrachado, lá em baixo, esmigalhado em mil e um bocadinhos pequeninos, quase invisíveis, numa morte que seria ainda mais cruel porque teria lugar num planeta muito, muito distante do seu pântano cerimonial, lá longe, em casa.

— Tragam-me uma manta larga e opaca. De preferência de textura rugosa, mas sem pêlos. Rápido! — ordenou o Chefe de Protocolo numa voz urgente, ao mesmo tempo que se punha de joelhos ao lado do embaixador e lhe ajeitava o filtro atmosférico aos espiráculos.

O ministro prendeu a respiração de uma forma que até através da gritaria ambiente foi audível. Quando Serra olhou para ele, já pronto a repetir o pedido, deparou com uma face redonda e vermelhíssima e com uns olhinhos, de aparência pisca e lacrimejante, que mesmo apesar de escondidos por trás dos óculos grossos estavam postos nele de uma forma que, dir-se-ia, seria capaz de arrancar a sua pele em longas tiras sanguinolentas. Serra suspirou. Aquilo ia doer.

— Mendes — disse —, você e eu temos as nossas divergências, tivemos as nossas batalhinhas de influência, você ganhou quase todas, tudo bem. Mas agora, no que diz respeito ao ET, quem manda sou eu porque você não percebe nada de nada nem do corpo do ET nem do cérebro do ET, nem da língua do ET. E eu não tenho tempo para lutas de galos. Entendido? Arranje-me i-me-dia-ta-men-te a manta que pedi! I-me-dia-ta-men-te!

O Furão soltou um par de ruídos estrangulados, conseguiu a proeza de corar ainda mais (parecia que até o cabelo e os óculos, já não falando da camisa e do resto do vestuário, tinham ficado cobertos por uma camada contínua de poeira sanguínea), abriu a boca, fechou a boca, abriu as mãos, fechou-as em punhos de onde as veias quase saltavam, juntando-se às do pescoço numa nuvem de tubículos extracorporais e latejantes, eriçou todos os fios de cabelo que tinham escapado à calvície artificial, afastou as orelhas para trás e, finalmente, virou-se para o seu assessor e para a chefe do seu gabinete (que desde que a conversa começara se iam encolhendo cada vez mais por trás dele, tentando passar despercebidos mas sem sair das imediações, sem dar hipótese a que os acusassem de desleixo no desempenho das suas funções) e berrou, histérico, mantendo os dentes cerrados e bem visíveis por trás dos lábios retesados:

— Façam o que ele diz! Já-já-já-já-já!

Serra olhou para o outro, por um momento. O ministro tremia visivelmente, mas tirando a tremedeira mantinha-se especado, com uma imobilidade que até se estendia aos olhos, que não pestanejavam, fitos em Serra, espreitando ferozmente através daquelas lentes desnecessariamente espessas, que se esforçavam, sem grande sucesso, por escondê-los. O Furão parecia projectar gotículas de fúria em todas as direcções, gotículas que partiam em desfilada, em trajectórias balísticas que invariavelmente atravessavam o corpo de Serra, após o que voltavam para trás, em nova trajectória balística de sentido inverso, trespassando Serra uma vez mais, e outra e outra ainda. Se um olhar matasse, Serra teria sido condenado, naqueles breves segundos, a mais de sete mortes sucessivas, cada uma mais dolorosa que a anterior.

O Chefe de Protocolo reprimiu, a custo, um sorriso. Era raro, mas por vezes as escaramuças com o velho Furão Caixa-d’Óculos resultavam em vitórias rotundas para o adversário. E ali estava uma.

Óptimo!

Só faltava colocar uma cereja no topo do bolo. Talvez não fosse muito aconselhável colocá-la, mas quem conseguiria resistir à tentação?

— Obrigado — disse Serra suavemente. — Lembrar-me-ei desta sua amabilidade.

O ministro soltou mais um ruído agudo e inarticulado, virou costas e foi-se acalmar para longe da vista do filho da mãe do chefe de protocolo e da porcaria do monstro extraterrestre que tinha causado tudo aquilo e devia ser morto, morto, morto, morto, os dois mortos, mortos, mortos, mortos, berrando a quem se lhe atravessasse na frente coisas como Fora! Desapareça! Rua daqui, desastrado!, ordens e gritos interrompidos sempre que o interlocutor detinha uma posição hierárquica semelhante à sua ou superior, casos em que as palavras, agora murmuradas com discrição, passavam a Perdão... Vossa excelência dá licença? Queira desculpar...

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