TAMBÉM É VERDADE QUE não teve muito tempo para tentar pôr um sentido naquela conversa, porque logo em seguida o nível de ruído voltou a aumentar e começou a dizer-se nas redondezas que os seguranças tinham interceptado qualquer coisa à entrada da barquinha. Serra pôs-se de pé e espreitou por cima da multidão, tentando entender o que se passava, temendo que fosse o que temia. E era. A Grandelasca e o estafeta tinham chegado, carregados de material com um aspecto que devia parecer altamente suspeito aos olhos da segurança, porque um cordão de homens devidamente espadaúdos formava uma barreira impenetrável em torno da entrada e procurava retirar a aparelhagem das mãos da técnica e do estafeta. Este cedia os aparelhos que carregava de bom grado, com um sorriso tímido afivelado num rosto que como que gritava inocência através de cada poro. Aquela, bem pelo contrário, lutava por manter a posse dos objectos que transportava, fazia ameaças, soltava gritos estridentes, exigia falar com Fulano, Sicrano e Serra, enfim, armava escândalo. À sua volta, a multidão de ricos, poderosos e candidatos a ricos e poderosos afastava-se, com receio de algum atentado, embora os homens não conseguissem evitar lançar à técnica longos olhares apreciadores, que tinham como consequência automática que as suas acompanhantes femininas os brindassem com puxões, beliscões, palmadas dadas com as mãos ou com carteiras e revistas de plástico e palavras rosnadas de forma enfática.
Serra tinha-se esquecido de avisar (ou de mandar avisar) a segurança da chegada daquele material. Ele próprio entrara sem qualquer problema porque já o conheciam. Trouxera o tradutor automático sem ser interceptado porque antes de colocar o aparelho ao serviço da comunicação com o Presidente, ainda lá em baixo, no palácio, os serviços secretos tinham-no examinado com todo o cuidado, para ver se era inócuo ou se traria, algures nos recônditos impenetráveis do seu interior biomecânico, uma super-arma qualquer. Mas a Grandelasca, e especialmente o material que transportava, não tinham autorização de segurança. Não tinham entrada automática em todos os lugares presidenciais. Muito menos no dirigível, em dia de Tona, um dos mais sensíveis locais do planeta.
Serra coçou a cabeça, indeciso. Devia ir ajudar, mas não podia deixar o ET ali sozinho. E se alguém o pisasse, pontapeasse ou esmagasse?
Por outro lado, quando chegara ele estava abandonado no chão e nada lhe acontecera de mais grave do que algo ou alguém lhe ter desencaixado o filtro atmosférico, o que podia até ter acontecido no momento em que o hoog caíra, sem intervenção de nenhuma força exterior à gravidade.
Mas e se o ET acordasse? Tinha de ter alguém que o introduzisse lentamente à situação e não o deixasse ver imediatamente o lugar onde se encontrava. Ou, melhor, o lugar acima do qual se encontrava...
O certo era que tinha de ir ajudar. Sem os aparelhos que a Grandelasca trazia, a probabilidade de o embaixador conseguir embaixadar em tempo útil eram remotas. Especialmente sem aquele aparelhómetro alienígena que mais dúvidas e cuidados devia levantar à segurança. Nem mesmo Serra estava muito convencido da sua inocuidade: a maior parte das funções da máquina, tão orgânica como o tradutor automático e mais misteriosa ainda, eram totalmente desconhecidas dos terrestres, que se limitavam a usá-la seguindo aquilo que fora possível decifrar das instruções recebidas dos hoog, um gigantesco ficheiro de quase três terabytes do qual só tinha sido decifrada uma percentagem muito reduzida.
O que se decifrara, no entanto, mostrara que aquilo podia funcionar como um médico automático para a fisiologia hoog.
Era imperativo que a segurança deixasse passar aquela máquina!
Serra olhou em volta, à procura de alguém que fosse suficientemente de confiança para ficar a guardar o extraterrestre enquanto ele ia conversar com a segurança e voltava. Não viu ninguém. Muitos dos que o rodeavam, parte da comitiva presidencial, mostravam-se ausentes, ou fechados em si próprios numa melancolia derrotada, imitando o futuro ex-presidente que continuava a fitar as peripécias da Tona com olhos aguados. Outros olhavam em volta, aparentemente à procura de alguma coisa. Outros ainda conversavam em sussurros conspiratórios, pelos comunicadores, com interlocutores invisíveis que lhes respondiam ao ouvido palavras cujo significado só era aparente pelas reacções inconscientes que causavam na fisionomia dos futuros ex-membros do gabinete. Cada um absolutamente absorvido nos seus próprios assuntos, cada um perdido nas paisagens cinzentas dos seus próprios pensamentos, nos montes e vales (mais vales que montes, naquele momento) dos seus territórios privados.
Eram todos imprestáveis. Sem excepção.
E entretanto, a confusão junto à porta subia de tom. Serra espreitou uma vez mais por sobre o mar de cabeças, que se começavam a voltar com maior insistência naquela direcção, incomodadas pelo ruído e curiosas com aquela perturbação da ordem pública (o que não deixava de ser irónico, se se tivesse em conta a gritaria que imperava naquele lugar — aparentemente uma coisa era gritar a favor ou contra os acontecimentos da Tona, e outra muito diferente era gritar a propósito de um conflito de interesses relacionado com o acesso ou não ao local. Mesmo que as palavras fossem quase iguais e os decibéis também). A Grandelasca tentava esbracejar, já sem o sintetizador nas mãos, agarrada por três dos casacos de basebol negros da segurança, disparando o mais sonoramente que era capaz longas rajadas de insultos e apelos, nos quais o nome Serra fazia aparições frequentes. Um quarto casaco negro afastava-se em direcção à saída, com um saco de plástico na mão, bem afastado na sua frente, contendo um sintetizador não muito bem tratado, que segregava muco cor de rosa com ar desanimado. Dos restantes aparelhos, já não havia nem sinal.
Merda!, pensou Serra, começando a correr em direcção da entrada, afastando quem quer que se lhe atravessasse no caminho com empurrões, encontrões, rasteiras, cotoveladas, insultos, o que fosse preciso, enquanto berrava:
— Parem! Parem! Parem! Parem!...
Pararam. Uma investida daquelas pararia qualquer um.
Mas os casacos negros, parando embora, sacaram das suas pistolas tranquilizantes e apontaram-nas ao investidor, pelo sim pelo não.
Serra, por sua vez, quando se apercebeu de que se tinha transformado em ponto de mira para um conjunto letal de pistolas tranquilizantes, um autêntico alvo Rorscharch em movimento, também parou, ergueu as mãos acima da cabeça e gritou:
— Óóóó! Calma! Calma! Está tudo bem!
Esboçou um sorriso, que lhe saiu amarelo-vivo, e acrescentou:
— Sou eu, o Serra, Chefe de Protocolo Para Contactos com Espécies não-Humanas. Alta figura do Estado. Vocês conhecem-me. Essa senhora é a Joanina Grandelasca, que trabalha comigo, e o jovem tem-me ajudado, como se pode ver pela cor da camisa. Tudo legal, no mais alto interesse do Estado. Certo?
Os casacos pretos entreolharam-se, acenaram uns para os outros e baixaram as pistolas. Um deles, certamente o mais graduado, falou:
— Pedimos desculpa, doutor. Mas estes dois indivíduos sem credenciais de segurança tentaram introduzir-se no dirigível, transportando objectos não-credenciados. É nosso dever detê-los para proceder a averiguações e avaliar o grau de risco que representam para a segurança do Estado, e remover imediatamente os objectos do local.
— Fui eu quem os mandou buscar — disse Serra — quer a eles, quer aos aparelhos. São inofensivos, mas fundamentais para prestar assistência ao extraterrestre.
— Peço desculpa, doutor, mas sem uma ordem directa do Presidente, teremos de seguir os procedimentos regulamentares para estas situações. Portanto se nos der licença...
— Espere! Sabe que as minhas competências me foram delegadas directamente pelo Presidente?
O casaco negro hesitou.
— Com o devido respeito, doutor, não me consta que Vossa Excelência tenha competências a nível da segurança do Estado. Se nos der licença...
— Não dou! A mulher e o estafeta podem não entrar, mas eu preciso desses aparelhos. Pelo menos daquele que ali o seu amigo tem no saco de plástico. Imediatamente. Cada minuto conta.
— Lamento imenso, doutor, mas não posso fazer isso. Se nos der...
— Você percebe, por acaso, que o extraterrestre corre perigo de vida? — gritou Serra, começando a ficar desesperado.
— Não sabia, doutor, mas não vejo o que é que isso tem a ver com a segurança...
— Não vê?! Não vê?! Aquilo é um embaixador, criatura! Um embaixador duma espécie capaz de viagem interstelar! Que pensa que nos acontecerá a todos e à sua querida segurança do Estado se ele volta para casa com más notícias a nosso respeito ou, pior, se não volta para casa de todo?
— Mas os objectos não estão cert...
— Qual é o seu nome, agente?
— Sombrio, senhor. José Sombrio. Mas não estou a ver...
— Posto?
— Tenente da Brigada Aerotransportada da Agência Central de Informações, senhor.
— E não quer deixar entrar no dirigível os aparelhos necessários para prestar assistência ao primeiro embaixador extraterrestre da história humana, contribuindo para o eventual agravamento do seu estado de saúde e, eventualmente, podendo vir a ser directamente responsável pela sua morte, é isso?
— Bem... eu...
— É isso?
O casaco negro olhou para os colegas, em busca de apoio, com ar infeliz. Os colegas olhavam fixamente para o vácuo por baixo dos seus pés.
— Pergunto mais uma vez: É isso?
— Não, senhor!
— Então? Posso introduzir os aparelhos no dirigível?
— Bem... a seg...
— Posso-ou-não-posso?
— Sim, senhor! Aquele aparelho, senhor!
— E os meus colaboradores, podem entrar?
— Sim, senhor!
— Lindo menino! — disse Serra, com um suspiro de alívio e, fazendo sinal para a Grandelasca e para o estafeta, acrescentou: — Venham!
Desta feita, não foi preciso usar os cotovelos nem abrir caminho à força de empurrão. A discussão tinha conseguido a proeza de desviar da Tona (que se encaminhava para o desfecho, de qualquer forma, e já parecia decidida) o interesse dos presentes, e o rumor de que havia uma potencial bomba dentro do dirigível já se tinha espalhado por toda a barquinha, criando ondas de preocupação nos presentes e abrindo clareiras em torno dos técnicos e do extraterrestre.
Em situações destas, o ser humano tem capacidades insuspeitadas de encontrar espaço vazio onde nenhum existia antes.
Quanto aos agentes da segurança, ficaram a observar o trio que se afastava, com grandes gotas de suor frio a nascer devagar das suas testas profissionalmente impassíveis, levando inconscientemente as mãos ao pescoço, tentando afastar a corda invisível que sentiam a apertá-lo, cada um pensando no azar insuperável de ter acontecido uma coisa daquelas precisamente no seu turno.
Pois é. O azar é parte da vida.
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
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