segunda-feira, 8 de setembro de 2008

7.

O DIRIGÍVEL ERA A TRIBUNA habitual das personalidades que pretendiam assistir à Tona (e tinham convite). Um seu antepassado muito menos luxuoso tinha sido instituído por um antecessor do actual presidente, durante uma crise energética, como forma barata e segura de levar presidente e comitiva a assistir a todas as peripécias da corrida, e a tradição entretanto solidificara-se e refinara-se. Hoje era impensável correr-se uma Tona sem que o dirigível presidencial lá estivesse, sobrevoando a corrida como uma águia sobrevoa o ninho.

Todos os anos de Tona, portanto, o dirigível descolava do balonporto do palácio carregado com presidente, comitiva e funcionários, flutuava de um lado para o outro durante as duas horas e meia que durava a corrida e ia aterrar, assim que a competição terminava, no relvado em frente do palácio, a fim de se proclamar o vencedor da corrida e dar início às cerimónias de transferência de poder para o novo Presidente, se fosse caso disso, ou de recondução do Presidente cessante na Presidência, se fosse essa a decisão da Tona. E não servia para mais nada. No resto do tempo, o dirigível limitava-se a ficar arrumado, desinflado e tristonho, no hangar do palácio, excepto dois ou três dias por ano, quando era trazido para fora para verificações, manutenção e treinos da equipagem.

Não servia oficialmente para mais nada. Pois não era raro que aqueles que tinham acesso ao hangar (funcionários do palácio, técnicos de manutenção, agentes de segurança, membros do governo, etc. e mais etc.) se escapassem até ao interior cristalino da barquinha, arrastando pelas mãos, ombros ou cintura uma companhia qualquer, tão íntima como sigilosa, para dar largas àquelas coisinhas que escolhem dia, hora, local e companhia. Uma das partes mais demoradas da preparação do dirigível para cada uma das Tonas era a limpeza. As coisas que foram aparecendo ao longo dos anos dentro daquela barquinha dariam para abrir e deixar bem recheado um museu dos pequenos objectos do quotidiano, com uma ala inteira dedicada às perversões humanas.

A vida do dirigível era monótona. Mas só se não contássemos com a sua vida secreta.

O mesmo não se podia dizer do cerimonial que rodeava a tomada de posse do novo presidente, quer fosse mesmo novo, quer fosse o antigo que assumia um novo mandato. Não vale a pena entrar em grandes detalhes: basta que se saiba que, embora a cerimónia principal decorresse imediatamente a seguir à corrida propriamente dita, havia cerimónias e rituais ao longo dos três meses seguintes à Tona. Era uma época muito atarefada para todos os funcionários do país. Quanto aos restantes cidadãos, à excepção daquela pequena franja de fanáticos da pompa e circunstância que sempre forraram os passeios com um mar de bocas abertas e olhos vidrados duma admiração vagamente patética sempre que pelas ruas desfilavam líderes, encaravam todo aquele cerimonial com uma indiferença fleumática, perdida que estava a novidade dos primeiros anos. Mas a Tona propriamente dita mantinha toda a sua magia inicial, se não a tivesse mesmo aumentado com o passar do tempo. No dia da Tona tudo era diferente dos outros dias.

O dirigível, embora andasse de um lado para o outro em perseguição dos concorrentes que seguiam à cabeça da corrida, ficava ligado ao palácio, para o que fosse necessário, por um conjunto de cordas cheias de nós. E o que era necessário era, salvo alguma situação excepcional, o mais variado conjunto de necessidades e caprichos presidenciais, que servidores e funcionários se apressavam a satisfazer, subindo e descendo as cordas com as suas mochilas às costas, num frenesim que só terminava quando a corrida se aproximava do fim. Nessa altura os Presidentes já costumavam estar demasiado absorvidos na competição para ter caprichos, berrando através do sistema sonoro do dirigível ensurdecedores slogans de incentivo aos seus atletas, e soltando os impropérios e insultos mais imaginativos (ou menos imaginativos, dependendo das qualidades retóricas do presidente em causa) contra os adversários. Ficou célebre a frase que João Paulo Terço, o quadragésimo quinto Presidente, berrou para a comitiva e quem mais o conseguisse ouvir (o que foi quase toda a população daquela parte da cidade), quando viu que, graças ao sprint final do chefe de equipa daquele que iria tornar-se o quadragésimo sexto Presidente, Ludovico Terrasseca, e graças a uma queda do mais forte dos seus próprios corredores, iria perder a corrida e a Presidência:

— Isto é pueril, vocês são todos pueris, a puerilidade abate-se sobre o mundo, que também é pueril!

Como ninguém ali sabia muito bem o que significava a palavra "pueril", resgatada a custo de um velho dicionário, horas antes da corrida, por um dos assessores do Presidente, a fim de que aquele a utilizasse se tivesse oportunidade, esta frase transformou-se no discurso oficial de derrota. Era considerado muito digno terminar o mandato com essas palavras. Dizia-se que quem o fazia “dava mostras de um elevado espírito democrático e capacidades de liderança fora do comum”.

Mudam-se os tempos, mudam-se as palavras...

E nem sequer importava que Terço tivesse passado os dois anos seguintes a tentar provar que o seu campeão tinha sido rasteirado e empurrado, recolhendo depoimentos, contratando pareceres às IAs, procurando nas imagens da corrida sinais de falsificação, chagando a cabeça a toda a gente, sendo um chato de primeira. A "Frase Pueril", como ficou conhecida, assim mesmo, com maiúsculas, entrou no léxico político, primeiro da nação e mais tarde do mundo inteiro, e sobreviveu ao seu autor, que viria a falecer tragicamente dois anos depois de ter perdido a Presidência num acidente de balão que nunca chegou a ficar totalmente esclarecido.

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