segunda-feira, 15 de setembro de 2008

8.

SERRA, O CHEFE DE PROTOCOLO, não fazia ideia nenhuma de muitos destes pormenores históricos, mas conhecia as cordas. E sabia duas coisas mais: que ele próprio sofria de vertigens e que o extraterrestre era membro de uma espécie fundamentalmente subterrânea que só a muito custo se elevava no ar, uma espécie que era provavelmente incapaz de compreender o conceito de pairar. Para eles, segundo o que Serra conseguira saber através da investigação realizada pela sua equipa de xenobiólogos e psicólogos radicais, voar era um modo de ir de um lugar para outro no menor espaço de tempo possível, e suspeitava-se que as aeronaves alienígenas eram completamente fechadas. Talvez houvesse uma forma qualquer de olhar para o exterior nos compartimentos dos pilotos, mas o mais certo é que não existisse o mais leve indício de uma janela no resto da fuselagem.

Serra sabia ainda, sem qualquer lugar para dúvidas, aquilo que qualquer terrestre com um aparelho de visão remota em casa sabia (o que só excluía quem não tinha casa): que a parte habitável do dirigível presidencial era composta por um pequeno varandim aberto e uma longa estrutura fechada feita de diamante artificial, construída em peça única, e totalmente livre de impurezas, riscos ou quaisquer outros obstáculos à livre circulação da luz. Especialmente no princípio da corrida, porque mais tarde raio de luz que tentasse penetrar naquela barquinha seria provável que esbarrasse numa das habituais, variadas e invariavelmente peganhentas poças de líquido derramado, ou numa migalha, ou num tufo de cabelos, ou num exemplar da miríade de papéis e papelinhos vários que eram deliberadamente deitados fora em ocasiões como aquela (desperdiçar papel era um luxo antigo, que não havia meio de sair de moda), ou em qualquer dos outros desperdícios mais imaginativos que revestiam o chão da barquinha com uma fina camada de porcaria sempre que as Tonas chegavam ao fim. Mas no princípio, a luz só era bloqueada pelos corpos dos passageiros e, por cima, pela massa oblonga do balão. Para baixo, a livre circulação das ondas luminosas provocava a ilusão perfeita de se estar suspenso de coisa nenhuma, a cem ou mais metros do solo.

Serra sabia, finalmente, que em toda a comitiva presidencial só ele sabia destas coisas.

Daí a corrida esbaforida até ao elevador mais próximo, os saltinhos de impaciência enquanto a porta não se abria (e até dois ou três murros na ombreira), os olhares para a escada como que a perguntar a si mesmo se pelos seis mil trezentos e vinte e oito degraus que o separavam do terraço não chegaria lá mais depressa, as olhadelas inconscientes para o relógio que marcava uma hora tão adiantada que tornava impossível que o dirigível presidencial ainda estivesse no solo (o que, por outro lado, tornava inútil toda aquela pressa, mas se alguém dissesse isso naquele momento a Serra, o mais certo era receber como paga uma catadupa de impropérios... ou coisas piores), e todos os outros sinais de impaciência que como que enchiam aquele átrio de electricidade estática. Só o tradutor automático parecia imune a toda aquela energia. Continuava, imóvel e impassível, a encher as mãos do Chefe de Protocolo de uma geleia de cor azul-marinho com um aspecto positivamente repugnante.



CLARO QUE QUANDO SERRA chegou ao balonporto, com o tradutor automático nas mãos e o estafeta a morder-lhe os calcanhares, o dirigível já lá não estava. Em vez disso, pairava sobre os jardins presidenciais com um ar majestoso, o saco de hidrogénio pintado com as cores da bandeira presidencial e a barquinha cheia de figurinhas pequeninas e multicoloridas, das quais de vez em quando se soltavam reflexos. Lá em baixo, julgando pelo ruído longínquo das aclamações, a corrida já se desenrolava e enchia de estímulos límbicos as mentes da multidão.

A Tona era uma febre. Poucos cidadãos eram imunes a ela, ou porque gostavam mesmo de ver uma pequena multidão a dar às pernas e a libertar litros de suor, ou porque as apostas subiam a valores astronómicos e quanto maior fosse o número dos candidatos à presidência, tanto maior seria o bolo a distribuir pelos que tivessem a sorte, inteligência ou presciência de apostar no vencedor. Havia rumores de fraudes, gigantescas manipulações envolvendo quantidades de dinheiro de dimensões oceânicas, vencedores (e portanto presidentes) e perdedores escolhidos a priori pelos donos das grandes fortunas. Mas não passavam de rumores, relegados para as páginas mais escondidas dos jornais da oposição, páginas protegidas por passwords, firewalls e demais mecanismos de privacidade só ultrapassáveis por iniciados, e distribuídas discretamente, aos milhões, nas entrelinhas de mensagens electrónicas aparentemente inócuas. Rumores nunca provados e que tinham o efeito perverso de alimentar a febre e de abanar as defesas imunitárias dos que ainda lhe iam resistindo.

Serra não fazia parte do grupo dos imunes à febre da Tona. Mas, como durante aquele ano tinha andado demasiado ocupado com os preparativos para a chegada do extraterrestre e respectiva aparelhagem (cujo exemplar presente no local parecia, de momento, uma grande glândula excretora de gosma), não tinha tido tempo de apostar, o que lhe diminuiu drasticamente o interesse pela corrida. Por isso, relanceou um olhar quase indiferente pelo parapeito de onde vinha a maior parte do barulho, e fungou com ar desdenhoso. Ou despeitado. Depois dirigiu-se para a corda mais próxima.

O estafeta foi com ele, trincando o lábio inferior, enquanto lançava olhares desesperados para o parapeito. Junto à corda ganhou coragem:

— Senhor, se não precisa mais de mim, eu...

— Calas-te! — cortou Serra. — E depois de fechares a boca, vais subir atrás de mim e amparar-me se eu me desequilibrar. Vou ter de subir esta porcaria com o tradutor automático nas mãos. Vira-te.

O estafeta hesitou, olhou para a cara de Serra sem entender, estremeceu com o olhar que o Chefe de Protocolo lhe enviou e, antes de ser alvo de mais palavras ríspidas, virou-se. Serra pousou o tradutor no chão e limpou as mãos com cuidado às costas da camisola do estafeta. Este gemeu baixinho, o que fez com que o tradutor automático acordasse:

— Oh, não! — traduziu o tradutor automático.

— Calou! — resmungou o chefe de protocolo enquanto pegava na máquina, sem deixar claro se falava com esta se com o estafeta. — E vê lá se te babas menos!... — acrescentou. O estafeta perguntou a si próprio, passando inconscientemente a língua pelos lábios: “babar-me?!”, mas Serra falava com o tradutor automático.

Este, no entanto, não deve ter percebido a ordem, ou se a percebeu não lhe ligou, visto que aproveitou a deixa para começar a segregar uma espessa geleia púrpura.

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