E ASSIM, O GRUPO CHEGOU junto do extraterrestre sem qualquer dificuldade. Mas o hoog, pelo contrário, parecia estar agora cheio de dificuldades, pois remexia-se sobre a manta, aparentando embora estar ainda inconsciente, e devia estar a emitir qualquer coisa de inaudível para os ouvidos humanos, visto que o tradutor automático tinha acordado da sua modorra, começando a empapar a manta com muco verde e dizendo palavras desconexas em várias línguas, enquanto fazia subir e descer o filamento que era usado como bocal.
Que se teria passado? À primeira vista não parecia haver alteração nenhuma no ambiente do ET: o filtro atmosférico mantinha-se bem colocado, o hoog estava praticamente na mesma posição em que tinha sido deixado, apesar dos movimentos que fazia, e a discussão com o segurança demorara pouco tempo. Não havia, portanto, nenhum motivo óbvio para a alteração do status-quo.
Que fazer?
Talvez perguntar-lhe? O ET parecia delirante, mas...
— Senhor Embaixador — disse Serra para o bocal — sou eu, o doutor Serra.
Nada aconteceu por algum tempo.
Mas depois o hoog estremeceu, esbracejou e, aparentemente, pipilou em ultrassom (pena não haver por ali cães para o confirmar) porque o tradutor grasnou, numa voz que era agora muito diferente do doce tom de soprano que tinha utilizado anteriormente:
— Motosserra?! Destruirá a cidade Repelim! Não! Não! Ide para longe da minha vista!
Inútil. Ou o hoog continuava inconsciente, ou o tradutor continuava avariado, ou as duas coisas. Repelim?! De que cartola saíra aquele coelho? E que teria dado ao tradutor, ou ao hoog, para começar de repente a falar em arcaico?
O melhor era usar, de uma vez por todas, o aparelho que tanta celeuma tinha levantado à entrada e ver que podia ele fazer pelo extraterrestre. E depressa, antes que o estrago fosse irreparável.
Se é que havia estrago. Se é que não era já irreparável. Se é que o aparelhómetro podia fazer alguma coisa pelo ET. Se é que...
— Joanina, passe-me o sintetizador por favor.
A Grandelasca começou a abrir o saco de plástico onde o aparelho se aninhava no meio de um pequeno lago de muco rosado. O burburinho ambiente recrudesceu.
— Ainda não — ordenou uma voz atrás de Serra, elevando-se, bem timbrada e hipnótica, sobre o ruído ambiente. O ainda presidente saíra da sua catatonia e estava de pé, a um par de metros do grupo que rodeava o extraterrestre, observando com atenção o que se passava e, obviamente, ouvindo todas as conversas. — Serra, você é capaz de me explicar o que é aquela coisa nojenta? Há por aí boatos de bomba, sabe? E é bom que você não esteja a preparar alguma, pelo menos ao pé de mim. — Dizendo isto, os olhos do presidente desviaram-se por um breve momento para o grupo do Meneres, que começava a ameaçar tomar conta de toda a barquinha, tal fora o crescimento que experimentara nos últimos minutos. Aproveitando a comoção causada pelo rumor de bomba no dirigível e os movimentos brownianos que esse rumor provocara na multidão, muitos dos mais altos funcionários do Estado, incluindo vários membros do actual governo, tinham descido até à zona ocupada pelos partidários do provável futuro presidente, procurando agora passar despercebidos pelos antigos correligionários, e ao mesmo tempo ser vistos, e bem vistos, pelos novos, um malabarismo social só ao alcance de um reduzido número de eleitos, seres abençoados com um talento especial.
— Não, Senhor Presidente, não há bomba nenhuma — respondeu Serra em voz alta, olhando em volta com uma expressão altiva onde se notava claramente o desprezo que sentia pela ignorância cobarde daquela gente. — Se se refere a isto — Serra apontou para o sintetizador, — trata-se de um aparelho hoog que tem propriedades médicas, e nos permitirá, se tudo correr bem, recuperar a saúde do embaixador. Não oferece qualquer risco para...
Não concluiu a frase. Foi interrompido por uma série de convulsões do ET e pelo tradutor automático, que mudou a cor do muco que segregava, agora para um verde muito escuro, quase negro, e declamou:
— Apodrecia c’um fétido e bruto / cheiro, que o ar vizinho infecionava / rais-parta, criatura! O fogo! O fogo!
Serra fitou o tradutor automático, perplexo. Aquelas palavras soavam-lhe vagamente conhecidas, mas ali estavam muito fora de contexto. Eram incongruentes, em boa parte porque o extraterrestre continuava, aparentemente, sem dar acordo de si. Seria alguma função automática dos hoog, que Serra nunca encontrara ou de que nunca, sequer, ouvira falar? Seria normal? Seria doença? Seria pior que doença?
— Será contagioso? — perguntou-lhe uma voz ao ouvido, tão próxima que o Chefe de Protocolo se sobressaltou. Era um dos ministros que ainda restavam ao Presidente, um homem de bigode farfalhudo, grandes olhos pestanudos e gestos efeminados que procurava virilizar, sem grande sucesso. Chamava-se Pedro Janela, era ministro da saúde e médico de formação (pelo menos assim rezavam as biografias oficiais) sem nunca ter exercido na vida a profissão.
— Disparate! — disparou Serra quase sem dar por isso, compreendendo tarde demais que, provavelmente, tinha pensado em voz alta. — Claro que não!...
— O que é que é disparate? Não cochiche tanto, Janela! — ordenou o Presidente, com ar zangado, tomando logo de seguida fôlego e abrindo a boca, enquanto coçava a comissura do lábio com a mão esquerda, um gesto muito seu, que usava sempre que se preparava para repreender alguém de forma firme. Mas ficou-se pelo gesto, porque de súbito, o tradutor fez soar, em voz trovejante:
— Viram gentes incógnitas e estranhas. O ar sabe a chuva, o ar é mau. Vendo vários costumes, várias manhas. Disparates, tonteiras, maluqueiras, desatinos, deu-lhe a louca e abriu a boca!
O Presidente já a tinha aberta e assim a manteve, mas Serra deu por si a deixar cair o maxilar inferior, cada vez mais espantado, momentaneamente sem reacção. Também a Grandelasca abriu a boca, pondo-lhe a mão à frente como se se tivesse assustado. O único que não acompanhou o movimento de maxilares colectivo foi o ministro Janela, que apertou muito os lábios, projectando-os para a frente e reduzindo a boca a um botãozinho cor de rosa. Quanto ao estafeta, já se tinha escapulido discretamente por entre as pessoas que rarefaziam cada vez mais aquela zona.
Por fim, Serra reagiu. Ajoelhou-se, arrancou o saco de plástico das mãos da Grandelasca, ignorou a voz autoritária do Presidente que o intimava com insistência, exigindo explicações, ameaçando consequências tenebrosas, rosnando pragas, abriu o saco, lutou alguns segundos contra o sintetizador, que teimava em escorregar-lhe por entre os dedos, ouviu vagamente, no limiar da consciência, os ruídos de pânico e nojo que soltava a multidão, ainda teve tempo para um fugaz pensamento acerca do motivo porque aqueles idiotas não estavam mas é a ver a Tona e não me deixavam de chatear duma vez por todas, que raios os partam, e colocou o aparelho, com todo o cuidado, sobre uma zona do corpo do extraterrestre onde a pele gelatinosa endurecia um pouco e se subdividia nuns apêndices minúsculos que pareciam algo de híbrido entre pêlos e tentáculos (tecnicamente, eram flagelos gigantescos), após o que premiu com suavidade duas áreas do sintetizador que serviam de controlo. A máquina parou imediatamente de segregar muco e ficou muito quieta, fazendo, no entanto, soar um zumbido de baixa intensidade.
— Estou ligada e a analisar a criatura — traduziu, fielmente, o tradutor automático.
— Arre! — berrou o presidente, ainda a tentar que Serra lhe prestasse atenção.
segunda-feira, 13 de outubro de 2008
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