segunda-feira, 20 de outubro de 2008

13.

ENTRETANTO, LÁ EM BAIXO, as coisas continuavam a correr bem ao Meneres. Hermínio Eiró ainda comandava isolado, e embora a vantagem sobre o primeiro corredor de Faneco, João Machadão, se tivesse reduzido consideravelmente, ainda era relativamente confortável. Mas mesmo que a liderança da Tona estivesse sob ameaça iminente, Meneres continuava em grande vantagem na corrida à presidência dada a posição dos seus corredores secundários, que já quase lhe asseguravam a eleição mesmo que Eiró não vencesse a corrida. Já a posição do actual presidente parecia ser de total ausência de esperança. Joaquim do Fim tinha descolado do grupo perseguidor alguns quilómetros atrás, e arrastava-se agora na décima terceira posição, na companhia de um seu companheiro de equipa, e seguido a alguma distância por mais três. Se não houvesse tantos corredores do Meneres nos dez primeiros, se as posições estivessem melhor distribuídas na cabeça da corrida, o presidente ainda teria uma remota hipótese de reeleição. Mas assim...

Só um golpe de teatro, um cataclismo qualquer, uma rabanada de vento competitivo e selectivo que varresse da Tona os atletas do Meneres.

Se ao menos fosse possível colocar atiradores de elite em pontos estratégicos!...

Mas, alguns mandatos antes, esse método fora levado à prática pelo presidente Veduplo Arbusto d’Oliveira, longínquo descendente do velho Jorge Arbusto d’Oliveira, o Grande Palhaço (a família Arbusto d’Oliveira era, aliás, uma frondosa árvore na política da República. Mesmo apesar do Grande Palhaço... ou talvez por causa dele). Atiradores de elite estrategicamente colocados no topo dos edifícios próximos da meta tinham dizimado os principais oponentes dos corredores de Arbusto d’Oliveira, numa acção coordenada na perfeição que não deixou escapar nenhum (e outra coisa não seria de esperar, com uma unidade de elite dos Serviços Secretos Militares a tratar do assunto), e levou a equipa de Arbusto d’Oliveira à vitória mais folgada na história das Tonas. Não servira de nada. O povo, que 365 dias por ano se recolhia na sua tradicional apatia e indiferença, reagiu violenta e surpreendentemente quando viu que alguém estava a pôr em causa a sua velha e sacrossanta corrida da Tona, tentando aldrabá-la de forma violenta. Nuvens de uma revolta nunca vista caíram sobre o planeta. Explodiram motins nas cidades, grandes e pequenas por igual, a pilhagem generalizou-se, e até os polícias entraram na revolta à sua maneira, “restabelecendo a ordem” durante o tempo de serviço, em acções que resultavam em grande número de mortos e feridos, e participando dos saques durante as folgas, à paisana, chegando mesmo a envolver-se com os seus colegas em violentos tiroteios pelas ruas secundárias das cidades. As coisas só se acalmaram após intervenção do exército que, à boa maneira militar, levou tudo à frente, submergindo a revolta e a violência num mar de cadáveres desmembrados e chamuscados. Calculou-se mais tarde que o número de vítimas causadas pelos militares tinha sido equivalente ao total de mortos e feridos que seriam causados por três anos de violência civil contínua, mas os cálculos foram abafados, quem os realizou foi demitido, e acabou tudo debitado na conta das vítimas colaterais e esquecido.

Os motins nem sequer foram dirigidos especificamente contra as instituições: foram apenas uma explosão de raiva. Tudo foi tão desorganizado e espontâneo que ninguém se lembrou, por exemplo, de alvejar o dirigível presidencial, o centro óbvio da fraude. O aparelho ainda se encontrava em voo quando a violência começou, executando as manobras finais de aproximação aos jardins do palácio, para onde estavam marcadas, como sempre, as cerimónias de investidura do novo presidente no cargo, o que neste caso teria significado a recondução de Arbusto d’Oliveira.

Mas não foi bem isso que se passou. Assim que começaram a chegar à barquinha notícias de distúrbios, o dirigível voltou a ganhar altitude à pressa e foi aterrar no terraço do palácio, no mesmo local de onde tradicionalmente partia. Arbusto d’Oliveira saiu do aparelho em corrida, rodeado de seguranças que esforçavam os pescoços na tentativa de olhar para todos os lados ao mesmo tempo, e que o enfiaram, aos empurrões e em tempo recorde, com a sem-cerimónia das situações de emergência, na protecção das paredes do palácio. Nunca mais ninguém o viu. Os boatos, claro, espalharam-se como fogo em gasolina, alguns de nascimento espontâneo, outros, como se veio a saber mais tarde, propagados pelos próprios ajudantes de Arbusto d’Oliveira a fim de ocultar a sua fuga. Porque de fuga se tratou, de facto. Assim que soube do grau de violência que os motins tinham entretanto atingido, Veduplo Arbusto d’Oliveira fez uma rápida visita às caves do palácio, onde tinha sido preparada, para o caso de tudo correr mal, uma sala de operações repleta de tecnologia de ponta. Aí, foi transformado, no tempo recorde de duas horas de trinta e sete minutos, em Ágata Marisa. Na Ágata Marisa. Naquela Ágata Marisa que veio a conquistar, nos anos seguintes, o título de maior entertainer do país. Na Ágata Marisa que estava permanentemente nos cabeçalhos das notícias devido, por vezes, aos seus sucessos musicais, mas mais frequentemente às tórridas e escandalosas aventuras sexuais que mantinha com alguns dos mais altos vultos da política e da finança. Na Ágata Marisa dinamizadora do PIMBA — Programa Interdepartamental para a Massificação dos Bonitos Artistas —, cujo sucesso fez muita gente perguntar a si própria de onde lhe teriam vindo tais capacidades organizativas e tamanho poder.

Se sonhassem!...

Só quando Ágata Marisa morreu é que o seu passado (que sempre se recusara a desvendar, guardando ciosamente o mistério, o que contribuiu sobremaneira para o seu sucesso) veio a público, numa autobiografia cuja publicação deixou em testamento e que se transformou em best-seller instantâneo, enriquecendo do dia para a noite a pequena editora a que tinha sido confiada, causando ao mesmo tempo um dos maiores escândalos da história do planeta. Quem nunca ouviu falar do clássico “Duplo Veduplo?” Aí está!...

Feliz ou infelizmente, porém, o actual presidente não tinha qualquer intenção de se transformar numa segunda Ágata Marisa. Deixava essas esquisitices para o Janela.

Portanto, atiradores estavam fora de questão. “Sabotagem alimentar”, para usar um eufemismo que estivera na moda uns anos antes, também não era uma hipótese viável, porque os atletas eram vigiados 24 horas por dia durante os dois meses anteriores à Tona e nada escapava do escrutínio popular. Havia dois canais especialmente dedicados a mostrar a todos os espectadores interactivos o dia-a-dia dos atletas, dando particular atenção, como era natural, às partes que envolviam sexo e violência. Havia atletas que se tornavam estrelas de primeira grandeza apenas graças a estes canais e às suas próprias práticas sexuais escabrosas, que causavam à nação autênticos orgasmos colectivos. Rapidamente eram esquecidos uma vez corrida a Tona, mas enquanto a fama durava tiravam bom partido dela.

Outras formas de ataque, como bioarmas e nanoarmas, estavam também fora de questão, porque ainda não se encontrara nenhum meio de limitar os seus efeitos letais a um ou dois indivíduos, e iriam, por certo, afectar a assistência, num efeito colateral indesejável por poder levar, uma vez mais, à revolta do povo. E todos os presidentes temiam acima de tudo a revolta do povo.

Enfim... restava aguentar, aceitar o veredicto da Tona com o máximo de espírito democrático que desse para reunir, mesmo que à pressa, e perder as eleições com a dignidade possível.

Para o actual presidente, isso era muito mais fácil de dizer do que de fazer...

Mas uma coisa tinha de reconhecer-se: ele ficara junto ao ET, corajosamente (nas suas costas dizia-se que inconscientemente, apontando a atitude como um perfeito exemplo da bondade da mudança), enquanto a maioria das altas individualidades se afastava o mais possível do hoog e da eventual bomba que se lhe tinha colado ao corpo como se fosse um mutante de sanguessuga, tendo alguns chegado mesmo a preferir enfrentar a indignidade de uma descida através das cordas para a segurança do terraço do palácio presidencial a ficar dentro de uma estrutura praticamente inquebrável, feita de diamante, na companhia de um ET esquisito e dos seus aparelhos mais esquisitos ainda, a que os boatos atribuíam as mais diversas e explosivas utilidades.

Eram só boatos. Mas de boatos se fazem as vidas de todas as cortes. E que era aquilo senão uma versão moderna de uma corte?...

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