segunda-feira, 27 de outubro de 2008

14.

NUMA BARQUINHA EM QUE os níveis de ruído voltavam, pouco e pouco, a subir, soou um zumbido.

— Análise à criatura concluída — traduziu o tradutor automático.

E?..., pensou Serra, cada vez mais preocupado com o prolongamento da inconsciência do alienígena, ou melhor, com o atraso na implementação de um tratamento, e também com a peculiar tendência que o tradutor tinha adquirido ultimamente de tratar o hoog por “criatura”. De certeza que um instrumento médico hoog não iria ser insultuoso ao ponto de se referir aos seus criadores como “criaturas”... ou seria? Que sabia ele da psicologia hoog para além de ter aflorado uma camada quase invisível da superfície, quase exclusivamente dedicada às questões diplomáticas? Como podia ter certeza de que o tratamento de “criatura” era inadequado numa situação íntima como o contacto próximo entre um doente e o seu sintetizador?

Serra deixava-se entrar de vez em quando nestes círculos de raciocínio relativos ao extraterrestre. Claro que nunca chegava a conclusão nenhuma: limitava-se a removê-los para os recôncavos profundos do cérebro, chamando-os de vez em quando à superfície a fim de, dizia, recordar-se com humildade da sua imensa ignorância.

Não que isso evitasse que a sua reputação fosse, quer nos meios científicos, quer nos políticos e diplomáticos, a de ser um sacana arrogante e quase insuportavelmente egocêntrico. Uma reputação sólida, quase à prova de bala, e absolutamente à prova de “modéstias”.

Um zumbido. Uma pausa. O tradutor estrangulou um som pegajoso. Outro zumbido. O tradutor traduziu:

— Dados avaliados. Anfitrite, formosa como as flores / neste caso não quis que falecesse. A criatura está apenas em coma de elevação. Para proceder ao tratamento, prima um; Para deixar para mais tarde, prima zero; Para mais explicações, prima a tecla cardinal; Para voltar ao menu, prima asterisco.

“Para mais explicações, prima a tecla cardinal”?! Onde raio era a tecla cardinal? Ou o asterisco?

Em todo o caso, aquele “apenas” era promissor. Assinalava um estado pouco grave, desvalorizava o problema, facilitava a solução, desanuviava o futuro do hoog, de Serra e do próprio planeta Terra.

Mas seria que se podia confiar em tal “apenas”? Afinal de contas, que sabia ele da psicologia de...

Argh! Não! Pensamentos circulares outra vez, não!

Serra debruçou-se sobre o sintetizador, que continuava colado ao corpo do extraterrestre. Àquela distância, o cheiro era incomodativo, e o Chefe de Protocolo torceu o nariz enquanto chamava:

— Joanina!

Examinou cuidadosamente o dispositivo. Cardinais, ali, não havia, nem sequer se encontrava nada que se assemelhasse remotamente a um símbolo composto por duas barras horizontais e duas barras verticais. Seria uma analogia? Devia ser e, se fosse, a Grandelasca devia saber...

Serra olhou para um lado e depois para o outro. Não se via a Grandelasca em lado nenhum. Nem ninguém, aliás: Serra estava sozinho naquela zona da barquinha, cercado por um círculo compacto de caras ansiosas, a alguns metros de distância. Nem Grandelasca, nem estafeta, nem assessores do presidente, ninguém. Até mesmo o presidente tinha desaparecido, talvez abandonando a imagem de intrepidez e assumindo uma cobardia igual à dos demais, ou talvez de regresso ao compromisso oficial de observar, com o fair play possível, o seu retorno ao anonimato político.

— Joanina! — chamou Serra mais alto, pondo-se em pé, tentando espreitar por sobre as cabeças da multidão, tentando fazer-se ouvir através do burburinho que voltara a níveis ensurdecedores, mesmo sem os epítetos da comitiva presidencial. Esta estava agora muito silenciosa, mas por outro lado também estava muito reduzida. Bastavam as aclamações da comitiva do Meneres, já gigantesca, ocupando, à vontade, dois terços do espaço disponível na barquinha, para que nada mais se ouvisse a curta distância.

Era preciso berrar.

— Joanina! — berrou Serra e, finalmente, uma comoção na multidão mostrou sinais de que alguém tentava furar até ao espaço vazio. Era a Grandelasca que se aproximava, trazendo a tiracolo um estafeta em cuja cara o medo se revelava em brancura, que seria cadavérica se não fosse amenizada por linhas multicoloridas de muco já seco.

— Desculpe, doutor. Tive uma pequena necessidade. — justificou-se a Grandelasca quando chegou ao pé do Chefe de Protocolo, que a olhava com ar severo.

— Com ele? — provocou Serra, atirando o queixo na direcção do estafeta.

— Desculpe?!...

— Deixa lá isso. Temos de trabalhar. O tradutor automático disse-me para “premir a tecla cardinal” do sintetizador. Fazes alguma ideia de onde fica essa tecla?

A técnica, a tremer ligeiramente, passou a mão pelo cabelo e fechou os olhos, como se estivesse a tentar concentrar-se. Ou a tentar acalmar-se. Depois olhou para o ET e para os dois aparelhos.

— Que foi que o tradutor disse, exactamente?

— Que os dados tinham sido avaliados, que o hoog está em coma de elevação, seja lá isso o que for, e para premir cardinal para mais informação, asterisco para voltar ao menu, um para deixar para mais tarde e zero para proceder ao trata... — Serra coçou o queixo, embaraçado — hum... ou seria ao contrário?

— Não percebo nada. O aparelho não tem teclas numeradas... pelo menos segundo os manuais operacionais que o seu gabinete me entregou...

— Não tem. Deve ser uma analogia funcional qualquer que o tradutor resolveu arranjar, julgando que nos facilitava a vida. Geralmente, nos nossos aparelhos antigos, as teclas cardinal são teclas multifuncionais que têm a ver principalmente com funções especiais. Há alguma tecla no sintetizador com este tipo de função?

A técnica tentou recordar-se.

— A zona mais próxima dessas funções de que me lembro agora é a azul-três, próxima da crista, do lado esquerdo... desculpe... a terminologia do manual operacional é... hum... tecla térmica beta-12.

Serra coçou a cabeça. Era vago. Era muito vago...

E se não fosse essa a tal “tecla cardinal”? E se, ao colocar os dedos na beta-12, despoletasse uma função do sintetizador que fosse totalmente desconhecida e potencialmente perigosa?

— Que outras utilizações tem essa zona?

— Conhecidas, muitas, mas quase todas exigem uma conjugação com outras zonas. — respondeu a técnica — Desconhecidas... bem... não faço a mínima ideia... — acrescentou, olhando para o Chefe de Protocolo com os seus imensos olhos castanhos muito abertos.

— ... por definição — resmungou este, em resposta.

Maldito tradutor automático! E malditos técnicos hoog! Por que mil demónios uma espécie tão avançada como aquela, capaz de viagens interstelares e da produção de biomáquinas avançadas, não tinha conseguido criar um aparelho que interpretasse as coisas de modo inteligível? Que coisa!

A incompetência, pelos vistos, não escolhe espécies ou níveis tecnológicos...

Mas Serra tinha de tomar uma decisão. Aquele impasse já se arrastava há longos minutos, tantos que a excitação dos adeptos do Meneres (ou seja, já quase todas as pessoas que se mantinham na barquinha) começava a atingir níveis ensurdecedores, à medida que o número de quilómetros que faltavam para a meta se reduzia e Hermínio Eiró voltava a ganhar vantagem sobre o seu mais directo perseguidor. E quanto mais tempo se passasse com o ET inconsciente, pior seria quando ele acordasse. Se acordasse.

De resto, qual era a pior coisa que podia acontecer? Irem todos pelos ares?

Para cada um deles era uma tragédia, sem dúvida. Mas, se calhar, para o mundo isso seria uma bênção...

Serra conseguiu sorrir com aquele pensamento.

— Bem, que se lixe. Nada a fazer. Temos de tentar essa zona e esperar que dê certo. Certo?

— O doutor é que sabe... — respondeu a Grandelasca, nervosa. — Mas se me der licença, eu gostava de...

— Não, senhora. Tu ficas aqui comigo. — e, dizendo isto, Serra pôs o dedo anelar da mão esquerda sobre uma área azulada que só se distinguia do resto do revestimento do sintetizador (uma espécie de pele não muito elástica) pela cor e por estar coberta por uma série de nervuras semelhantes às de uma folha de carvalho, embora em ponto pequeno. O sintetizador vibrou debaixo do dedo de Serra, que o retirou imediatamente, um pouco assustado. A máquina produziu um zumbido, depois um clique, e em seguida uma série de zumbidos e estremecimentos, cliques e roncos que se prolongou por mais de um minuto, tempo suficiente para Serra pensar no curioso que era que uma espécie que comunicava principalmente em ultrassons tivesse construído máquinas que “falavam” umas com as outras numa gama de frequências audível para os humanos — e se as máquinas não fossem hoog, originalmente?... Arre! Mais um raciocínio circular, tão inútil como todos os outros! Serra estava a pô-lo de parte quando o tradutor começou a discursar:

Sabe que há muitos anos que os antigos / Reis nossos firmemente propuseram / vencer os trabalhos e perigos / que sempre às grandes cousas se opuseram? A anatomia hoog é disso mesmo prova viva. Criaturas parcialmente poiquilotérmicas, possuem um par de pulmões secundários que produzem oxigénio através de processos fotossintéticos, na ausência de alimento adequado e na presença das moléculas atmosféricas necessárias, nomeadamente metano, vapor de água, dióxido de carbono e alguns oligocomponentes...

(Que raio tem isto a ver com o que quer que seja?, pensou Serra)

... que não se encontram presentes na atmosfera terrestre. O deslocamento da máscara facial do Senhor Embaixador causou um choque metabólico que pode ser solucionado facilmente pela injecção de 23 cc de hooglobulina na sua corrente sanguínea...

(Ah!, entendeu Serra)

... tendo de esperar-se apenas alguns minutos pelo restabelecimento total das funções vitais. Mas nada disto é fundamental.

(Hã?, não entendeu Serra)

... Já a vista, pouco e pouco se desterra, e a criatura está quase no raio que a parta por causa de um coma de elevação. Trata-se de um estado clínico induzido por um choque elevatório — efeito psicossomático com uma mistura de causas, que vão da diminuição da pressão atmosférica a efeitos psicológicos causados pela visão de algo traumático relacionado com a altitude.

(Ai, ai, ai... assustou-se Serra)

... O tratamento é mais complexo, mas ainda possível, consistindo na aplicação de uma dose elevada de hoogabis endovenosa, uma substância que afecta as funções cerebrais dos hoog, induzindo euforia e despreocupação.

(Uma droga?! Vou ter de drogar o embaixador?! Estou frito, frito, frito, frito!, desesperou Serra)

... O Cabo vê já Arómata chamado. Para proceder ao tratamento completo, prima um; Para proceder ao tratamento do coma de elevação, prima dois; Para proceder ao tratamento do choque metabólico, prima três; Para alterar os tratamentos propostos, prima quatro; Para não fazer nada, prima zero; Para voltar ao menu, prima asterisco.

— OK, parece que vamos ter de premir um. — disse o Chefe de Protocolo depois de uma pausa, virando-se para a técnica. — Alguma ideia sobre onde fica o um?

Joanina Grandelasca enrolava e desenrolava uma madeixa de cabelo no dedo indicador da mão esquerda enquanto a outra mão lhe passeava pela face, testa e lábios (com uma ou outra visita ao pescoço). Não dizia nada. Ou pelo menos não dizia nada que se percebesse: fitava quase convulsivamente o sintetizador e murmurava qualquer coisa, num ruído contínuo de baixa intensidade.

— Joanina! Fiz-te uma pergunta!...

— Sim, sim — respondeu a técnica, sacudindo a mão esquerda, sempre agarrada à madeixa, e voltando de imediato aos murmúrios.

Entretanto, as altas individualidades presentes na barquinha tinham-se descontraído o suficiente para regressar às imediações dos cientistas e do ET, apesar de poucos terem notado esse facto. Absorvidos na corrida, lançando de vez em quando uma exclamação, o próprio movimento quase browniano das multidões, interrompido aqui e ali por fluxos organizados, tinha-os redistribuído em torno do tapete onde se encontrava o hoog sem qualquer deliberação ou determinação, apenas por forma a diminuir a densidade noutras zonas. Se bem que fluxos organizados ali era coisa que já praticamente não havia. Com o aproximar do fim da corrida e com o avolumar da certeza da derrota, o presidente deixara de ter caprichos, reduzindo o trânsito de serviçais quase a zero, e quanto ao fluxo discreto de apoiantes de outras candidaturas para junto do ruidoso grupo do mais que provável futuro presidente, este crescera tanto que mudar de posição já se tornara desnecessário. Agora, já se podiam encontrar quase em todo o lado apoiantes de sempre de Meneres, que elogiavam o candidato melhor colocado na proporção directa em que denegriam as qualidades dos candidatos derrotados, que apoiavam de todo o coração apenas uma hora antes. O presidente tinha sido votado ao abandono, rodeado apenas de alguns amigos da família (estatuto esse que não os comprometia em nada em termos políticos) e dos funcionários protocolares; afinal de contas, o homem ainda era presidente...

Da instalação sonora do dirigível saía agora apenas o comentário da principal cadeia de interactiva, cuja histeria contrastava de forma curiosa com a monotonia bocejante da corrida, na qual já nada de relevante acontecia há bastante tempo. A histeria interactiva também contrastava com os incentivos (ou insultos) do Presidente aos seus atletas, que se faziam ouvir anteriormente, mas apenas na medida em que agora as vozes que saíam dos amplificadores procuravam aparentar ao mesmo tempo independência e simpatia pelos corredores do Meneres, ao passo que a voz do presidente era clara e logicamente parcial para o seu próprio lado, levantando da multidão sorrisos condescendentes sempre que proferia uma afirmação particularmente contundente e afastada daquilo que esta via com os seus próprios olhos. O comentário reverberava no dirigível, completando o burburinho das conversas com uma profusão de ecos distorcidos e incompreensíveis que se infiltravam nos ouvidos dos presentes de uma forma quase subliminar, fazendo-os perder uma boa parte da sua capacidade de raciocínio, com o fluxo electrónico dos seus cérebros a esbarrar numa parede de som quase intransponível.

Era uma perfeita cacofonia. Por isso, quando a Grandelasca disse, num murmúrio ainda pensativo, que achava que sabia onde estava o teclado numérico do sintetizador, Serra, a não muito mais de dez centímetros de distância, só pôde responder na medida da sua compreensão:

— Hã?!

A técnica repetiu, falando mais alto e acrescentando:

— Não sei é qual é o sentido das teclas.

— Explica. — exigiu o Chefe de Protocolo.

— Bem, lembrei-me de uma zona aqui — Grandelasca apontava para uma área junto do topo mais largo do aparelho — onde há treze protuberâncias de cores um pouco diferentes. Como os hoog usam um sistema numérico de base doze, suponho que sejam os doze algarismos e o ponto decimal, ou qualquer coisa do género...

— Ponto decimal? Mas isto é alguma calculadora?

— Não, — disse a Grandelasca, de novo numa voz que mal se ouvia — mas é a única zona desta coisa que tem uma estrutura organizada de elementos semelhantes em número suficiente para ser um teclado numérico. É um bocado especulativo, mas...

— Um bocado especulativo?! Um bocado?! Raios partam as frases curtas! Esperas que eu confie numa dedução dessas? Nessa espécie de intuição feminina em travesti científico? Não me arranjas nada mais concreto? Sei lá, uns dados para tirar à sorte, ou coisa assim?...

— No manual operativo não vinha nada acerca de um teclado numérico! — gritou por sua vez a técnica, furiosa, perdendo de repente a timidez. — Não posso ser mais precisa quando o seu gabinete não me dá elementos para trabalhar. Faço o melhor que vocês me deixam fazer. E se não gosta do meu trabalho, demita-me! De certeza que encontrarei rapidamente quem me saiba dar valor!

Serra calou-se. O pior de tudo era que o raio da mulher, além de ficar um espanto quando se zangava, tinha razão. Nem ele nem nenhum dos membros da sua equipa tinha alguma vez encontrado alguma referência a um teclado numérico na documentação que tinham recebido dos hoog. Ou melhor, na parte dela que tinham conseguido decifrar...

Parecia que iam ter de confiar na sorte e no palpite da técnica. Da muito sexy técnica Joanina Grandelasca.

— OK, OK, tens razão, desculpa, é dos nervos — murmurou Serra, pondo olhos de carneiro mal morto, e massajando os rins da cientista. — Então diz lá: qual pensas que seja a tecla um?

— Tire-me imediatamente as mãos de cima! — rosnou Grandelasca, cada vez mais rosada, cada vez mais desejável, com os olhos cada vez mais abertos e os lábios mais vermelhos.

— Desculpa, desculpa — ronronou Serra, retirando a mão com enorme relutância — é da... dos nervos... mas diz, diz: qual é a tecla um?

A técnica arfou três ou quatro vezes, depois fechou os olhos, pôs as mãos na cara, passou-as pelo cabelo, devolveu-as à cara, fê-las puxar as bochechas para baixo, piscou os olhos duas ou três vezes e disse apenas, com uma voz que mesmo numa palavra tão curta conseguiu tremer:

— Bom...

Serra ficou à espera, os seus olhos de carneiro mal morto viajando num frenesim por todo o corpo da técnica, pelas caras que os rodeavam, pelo chão da barquinha, onde se viam, entre a manta que aconchegava o hoog e os pés que a rodeavam, fragmentos da Tona sem grande sentido, pequenos grupos, corredores isolados, multidões baças dos dois lados da rua ostentando bandeiras e cartazes dos candidatos preferidos e gesticulando, numa amálgama multicolorida e festiva, olhos de carneiro mal morto que se iam transfigurando a pouco e pouco, perdendo a lã e ganhando outros pêlos, cerdas rijas e cinzentas, pelagem de lobo.

— Não sei — disse por fim a técnica, já mais calma mas ainda com a voz alterada. — É esse o problema: não sei qual é a ordem das protuberâncias.

Serra debruçou-se sobre o sintetizador. De facto estavam lá as treze protuberâncias, no topo mais largo, uma área bem delimitada e conhecida na gíria do seu gabinete por Cartilagens de Judas, por serem treze e por terem uma rigidez superior à da maior parte da superfície do aparelho. A pele que espreitava por detrás das protuberâncias era de um tom amarelo-torrado quase castanho, ao passo que as próprias protuberâncias tinham tons subtilmente diferentes de verde. Não parecia haver qualquer correlação entre o tom específico de uma protuberância e a sua posição no conjunto. Mas uma das Cartilagens tinha traços avermelhados... o que sugeria que Joanina tivera razão no palpite.

— Parece que tens mesmo razão. Aquela ali deve ser a tecla do ponto decimal. E as outras podiam estar em escala cromática, se houvesse ali alguma ordem...

A técnica debruçou-se sobre o mecanismo, quase encostando a sua cabeça à de Serra, e enchendo as narinas deste com o seu cheiro. O chefe de protocolo estremeceu e pigarreou. A técnica disse, em voz alegre, a fúria já substituída por completo pela excitação do desafio intelectual e da descoberta:

— Pois é! A cor é diferente!... E há aqui outra tecla com uma cor diferente, vê? Esta aqui — a técnica apontava para um conjunto de três teclas, demasiado pequenas para serem individualizadas por algo tão largo como um dedo — é significativamente mais clara que as outras. Deve ser o zero. E isso resolve o problema!

Foi a vez de Serra se debruçar mais, encostando-se à técnica de uma forma nada inocente e murmurando uma desculpa quando Grandelasca se afastou, olhando-o com um ar desapontado. De facto, a tal tecla mais clara estava lá. Mas que?...

A técnica explicou o seu raciocínio antes de Serra ter tempo para acabar de formular mentalmente a dúvida:

— Se o zero é a tecla mais clara, elas devem ir escurecendo até ao onze. Portanto o um deve ser... esta. — concluiu, com ar triunfante, apontando para uma tecla numa das extremidades, que parecia ser mesmo ligeiramente mais clara que as demais.

Fazia sentido.

Mas estaria certo?

Serra naquele momento dava tudo para ter um hoog acordado e a conversar, a quem pudesse fazer algumas perguntas importantes. Mas não tinha. Logo, não podia. Logo...

— Vamos ter de experimentar — murmurou, pensando em voz alta.

— O quê? — perguntou a técnica — Desculpe, não percebi.

— Nada, nada. Estava a falar comigo. Parece-me que tens razão, mas dava qualquer coisa para ter a certeza.

A técnica encolheu os ombros e não respondeu. Nada havia a fazer ou a dizer, as coisas eram como eram, não havia nenhuma maneira de ter certezas a não ser pôr um dedo sobre a tal tecla e esperar pelo resultado.

— Há, pois! — gritou o chefe de protocolo, de repente, verbalizando uma vez mais a sequência dos seus pensamentos, agora em voz alta, o que causou grande perplexidade na sua companheira e, por motivos diferentes, nas pessoas que os rodeavam. — Ou pelo menos há uma maneira de ter mais alguma segurança na correcção do raciocínio. Repara: o conjunto de opções que a máquina nos deu usou os números de zero a quatro, cinco algarismos de um total de doze, deixando sete sem utilização. Os aparelhos que têm este tipo de menus de opções têm mecanismos de correcção de erros que impedem que se faça algum disparate carregando numa qualquer das teclas restantes...

— Os terrestres...

— Não só, os hoog também. Há uma coisa dessas nos controlos manuais do tradutor automático. E esse mecanismo faz com que, se pusermos as patinhas nos sítios indevidos, não aconteça nada para além da repetição das opções do menu. Ou seja, podemos arriscar pressionar as teclas de tons intermédios, uma vez que, se o nosso raciocínio estiver certo, elas não têm qualquer efeito seja qual for o sentido das cores. Que te parece?

A Joanina Grandelasca parecia que aquele “nosso raciocínio” lhe mexia com os nervos, mas fora isso até concordava. Não achava que o teste fosse lá muito relevante, mas era mais uma pequena garantia.

— Parece-me bem.

— OK, então vou carregar... nesta tecla — disse Serra enquanto pressionava levemente uma das protuberâncias com a ponta de uma unha. O aparelho zumbiu, soltou um clique, e mais alguns zumbidos, após o que o tradutor automático voltou a acordar:

Oh! Gente forte e de altos pensamentos! Essa opção é inválida, criatura! Repare, de novo e lentamente: Para proceder ao tratamento completo, prima um; Para proceder ao tratamento do coma de elevação, prima dois; Para proceder ao tratamento do choque metabólico, prima três; Para alterar os tratamentos propostos, prima quatro; Para não fazer nada, prima zero; Para voltar ao menu, prima asterisco. Percebeu?

— Boa! — gritaram os dois cientistas ao mesmo tempo, registando mas não se importando com o desrespeito implícito quer nas “criaturas”, quer na repetição “de novo e lentamente”, quer na pergunta sarcástica final, e soltando um conjunto de gargalhadas que só se extinguiram quando Serra se agarrou à técnica, passando-lhe um braço em torno dos ombros e puxando-a com força para si, gargalhando que “tínhamos razão! Tínhamos razão!” Grandelasca sacudiu-o, de súbito muito séria, de novo com as bochechas de um cor de rosa vivo, e gritou:

— Largue-me! E era eu quem tinha razão!

Raio de virgenzinha púdica!, resmungou Serra mentalmente, enquanto se afastava uma vez mais e concordava, já por reflexo condicionado:

— Certo, certo. Desculpa. Prime lá então tu a tecla que descobriste.

A Grandelasca lançou ao Chefe de Protocolo um olhar desconfiado, mas obedeceu. O aparelho ronronou qualquer coisa, e o tradutor automático explicou:

Assim cantava a Ninfa. Iniciado tratamento completo. Injectada hooglobulina. Iniciada espera de um minuto e vinte e três segundos para injecção de hoogabis. Restabelecimento da consciência previsto para dentro de cinco minutos e doze segundos. Efeitos eufóricos da hoogabis deverão durar cerca de catorze horas, após o que se seguirão duas horas de letargia.

O peso que saiu de cima de Serra foi indescritível. Tinha resultado. O tratamento estava em curso. Joanina tivera razão.

Restava o problema do que faria um hoog drogado no meio das mais poderosas personagens da Terra.

E do motivo por que o tradutor automático insistia em falar de forma esquisita, com um discurso cheio de “criaturas” e de tiradas arcanas, que mais pareciam versos dos Lusíadas...

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