segunda-feira, 3 de novembro de 2008

15.

O HOOG ACORDOU QUANDO faltavam pouco mais de três quilómetros para o fim da Tona. Hermínio Eiró mantinha-se inabalável no comando, seguido de muito perto por João Machadão que, mesmo ostentando um ar de exaustão total, não desarmava. Em terceiro e quarto vinham mais dois corredores do Meneres, também bastante próximos um do outro e, também a curta distância, seguiam outros dois corredores de duas candidaturas secundárias. Os atletas do actual presidente tinham recuperado algumas posições, sendo agora Manuel Sentado o melhor classificado, em oitavo, com Joaquim do Fim, em melhor forma do que há pouco, em décimo e a recuperar terreno em relação ao nono (outro corredor do Meneres), e mais dois corredores da equipa nos vinte primeiros. Mas quanto às equipas, a do Meneres continuava a liderar, é certo que com menos vantagem do que antes, mas com tanta certeza de vencer como vinha tendo desde a metade da corrida, o que justificava as gargalhadas e os plops das rolhas de champanhe que vinham do sector do candidato, no dirigível. Ou, melhor dizendo, que vinham mais do seu sector que dos outros, por uma questão de densidade; toda a gente queria ser vista ao lado do futuro presidente, e a multidão acotovelava-se e empurrava-se para se aproximar dele, rarefazendo a periferia. Multidão essa que só era mantida a alguma distância do candidato vencedor (embora com um fluxo contínuo de vai-vém) graças a um autêntico exército de funcionários do Palácio, experientes no pastoreio deste tipo de manada, que empurravam discretamente as altas individualidades nas direcções mais aconselháveis, ou seja, qualquer uma que as afastasse do Meneres.

O hoog acordou, portanto, para uma zona relativamente desimpedida e foi de imediato rodeado por Serra, pela Grandelasca, pelo estafeta, nosso velho conhecido, que se tinha afastado aquando do boato de bomba, mas não se atrevera a desertar por completo e regressara quando vira que as maquinetas nojentas do Senhor Embaixador, afinal, não tinham explodido, e por mais dois ou três ajudantes recrutados à pressa de entre os funcionários do Palácio graças a um par de berros de Serra e à exibição do seu cargo oficial e protocolar.

E a primeira coisa que o hoog disse depois de acordar foi:

Maaaaannnn!

Ou pelo menos foi esta a tradução que saiu das entranhas linguísticas do tradutor automático depois de o hoog ter executado um lento e longo gesto com um dos seus braços inferiores.

Serra sentiu imediatamente saudades das citações dos Lusíadas...

— Senhor Embaixador, — disse, depois de respirar fundo — bem-vindo de volta do lugar dos sonhos mucosos de um go-hoog verde-garrafa. Estimo que se esteja a sentir bem depois do infeliz incidente que o prostrou.

O tradutor pareceu ficar silencioso, mas provavelmente traduziu as palavras do chefe de protocolo, visto que o ET passado pouco tempo sacudiu-se com pouco vigor, e o tradutor respondeu:

— Criatura grande e feia, man... tou muito do baril, man! Vós estais a tripar com que cena, man?

Serra sentiu um aperto no coração. Aquilo ia ser difícil.

E sentiu outro aperto no coração quando reparou nas gargalhadinhas abafadas quer da Grandelasca, quer do estafeta, quer dos outros ajudantes, quer mesmo de alguns mirones que, ao ver o ET acordado, se tinham aproximado para assistir ao espectáculo.

Aquilo ia ser muito difícil.

— Vossa excelência teve um colapso nervoso quando o dirigível levantou voo. Um... — Serra procurou a palavra certa — goohatu. Também houve alguma contaminação atmosférica, mas julgamos que o seu sintetizador resolveu o assunto e...

— Criatura! — interrompeu o tradutor automático, depois de o hoog ter executado um par de movimentos que, dado o seu estado, deviam ser quase frenéticos — Que cena é essa de “tombo palerma no fundo do charco”?! Vós não sabeis comportar-vos perante um chavalo tão altamente como eu? Ai a gaita, man!...

Serra engoliu em seco e olhou em volta. Aquilo não podia estar a acontecer! Não podia! Não com ele!

E para piorar ainda mais as coisas, a quantidade de pessoas a ouvir a conversa, com hilaridade mal disfarçada estampada nos olhos, aumentava a cada minuto. Estava a juntar-se uma pequena multidão em torno do hoog. Só a barreira visual que aquela gente toda formava em torno do tapete, impedindo ao embaixador a visão do chão, lá muito em baixo, trazia algumas vantagens.

— Aaaaa... perdão, excelência. — gaguejou — Tratou-se provavelmente de uma pequena falha de tradução. Queria eu dizer que o Senhor Embaixador ficou momentaneamente doente, mas já está bom ainda que... — Serra hesitou. Seria ou não aconselhável falar-lhe da droga? As pessoas às vezes reagiam mal quando se sugeria que não estavam na posse total das suas faculdades mentais, mas o hoog não era uma pessoa. Ou antes, era uma espécie diferente de pessoa, que ninguém sabia lá muito bem como reagiria quando confrontado com uma situação deste tipo. Mas aquilo que tinha dito até agora mostrava-o inconsciente do seu estado, um tipo de reacção muito humano.

Era melhor ficar caladinho, pelo menos por enquanto...

— Ó bicho grandalhão e feioso! Acaba as frases, criatura! — exigiu o embaixador, nada diplomaticamente, por intermédio do seu tradutor...

Serra sentiu de repente uma necessidade irresistível de mentir:

— Perdão, Senhor Embaixador, mas parece haver alguns problemas com a tradução. Por favor, não tome à letra tudo o que o tradutor automático lhe disser.

— Que diabo se passa agora por aqui? — perguntou uma voz bem timbrada, em tom autoritário. O Presidente tinha-se juntado à multidão, com uma cara de poucos amigos que mostrava que a Tona continuava a correr-lhe mal. — Ah! O monstrinho acordou... óptimo, óptimo... mesmo a tempo de assistir a uma das mais cretinas das nossas tradições.

Serra, que tentara sem sucesso interrompê-lo, levou as mãos à cabeça ao ver o hoog começar a sacudir-se.

E o que esperava, veio.

— Quem é este chalado, meu? — grasnou o tradutor automático, obviamente dirigindo-se a Serra — e de que besta assustadora fala ele?

O Chefe de Protocolo soltou um suspiro e encolheu os ombros.

— Este é o nosso Presidente, Senhor Embaixador. Já se encontraram há pouco, lá em bai... hum... noutra sala. Quanto à bes...

— Serra, — interrompeu o presidente, com uma cara que entretanto conseguira a proeza de perder ainda mais alguns amigos — essa... essa coisa chamou-me chalado?!

— Senhor Presidente...

— Essa coisa nojenta chamou-me chalado?!

— Senhor Presidente, se me deixar...

— Sim ou não, Serra?

O Chefe de Protocolo aproximou-se do patrão e, segurando-lhe no cotovelo, conseguiu afastá-lo dali, murmurando “Senhor Presidente, se me deixar explicar...” e “vamos para ali, para que não nos ouçam”, e ouvindo ainda o tradutor automático a começar a dizer qualquer coisa que se perdeu no burburinho.

Afastaram-se alguns metros antes que o presidente estacasse, sem que, no entanto, conseguissem evitar que parte dos que se haviam aglomerado em torno do extraterrestre os seguissem. O espectáculo prometia.

— Então?

— Senhor Presidente, peço-lhe, por favor, que se acalme. O Embaixador provavelmente não lhe chamou nada de especial, mas estamos com alguns problemas com o tradutor automático. Além disso...

— Além disso o quê?

— Bem... parte do tratamento implicou a utilização de uma substância que tem sobre os hoog efeitos inebriantes. O embaixador não está em si, neste momento.

O presidente olhou para Serra com um brilho estranho no olhar, que se desanuviava, e que, aparentemente, contaminava os cantos da boca, uma vez que estes se começavam a arquear num ligeiro sorriso.

— Ah não? E quanto tempo vai durar essa... hum... incapacidade diplomática?

— É difícil de dizer neste momento, Senhor Presidente. Mas estimamos que cerca de catorze horas.

O presidente sorria agora abertamente.

— Ah! — disse — Que pena que o nosso caro embaixador seja obrigado a assistir em tal estado de consciência a todas as cerimónias de transferência do poder para o futuro presidente Meneres! — E acrescentou, soltando uma gargalhada:

— Não acha?

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