Mas apesar da presença do extraterrestre, as coisas começaram por seguir o ritual. E assim, logo que regressou da sua expedição em busca do hoog, o presidente sentou-se na cadeira central do semicírculo, olhando em volta, com um sorriso, para os adversários que aguardavam, observando-o pelo canto do olho e de braços cruzados, que ele fizesse os gestos necessários para os convidar a ocupar os seus lugares, numa coreografia velha de muitos anos. O presidente pôs as mãos junto do peito e atirou-as para a frente, numa curva ascendente, enquanto as abria e olhava para o alto. Em resposta, os elaborados sapatos de ténis, os casacos luxuosos de fibras derivadas do petróleo, os colares de candidatura, ocuparam as cadeiras numa sequência que fazia lembrar a arte oriental, entretanto espalhada pelo mundo inteiro, de derrubar longas séries coloridas de peças de dominó. A tradição cumprira-se.
O primeiro problema surgiu quando já todos os candidatos estavam instalados: ninguém parecia saber muito bem onde havia de colocar o extraterrestre, o qual interrompia a solenidade do momento (que pressupunha algum silêncio) com um cacarejar contínuo vindo do tradutor automático, perguntas em cima de perguntas em cima de perguntas, a que Serra fazia os possíveis por responder a contento ao mesmo tempo que procurava explicar em voz baixa ao ET que naquela altura não se devia falar tanto. Depois de uma breve reunião de emergência, os serviços protocolares do palácio acabaram por decidir-se pela colocação de um inédito conjunto de cadeiras atrás das do presidente e principais candidatos (o Meneres à esquerda, o Faneco à direita), onde se instalaram Serra, a Grandelasca e um estafeta que ostentava um sorriso de absoluto deslumbramento por baixo de uma camada púrpura de muco seco e estaladiço, que lhe cobria a cara quase por completo: o pobre homem nunca sonhara, nem nos seus sonhos mais eróticos, vir a figurar em tal lugar de destaque numa das mais impressionantes cerimónias do planeta. Quanto ao hoog, à falta de cadeiras especificamente desenhadas (havia-as, mas não ali no dirigível), teve de ficar em pé, logo atrás do Presidente, sacudindo os braços sem interrupção e tremendo muito.
Lá em baixo continuava tudo na mesma, faltando já pouco mais de um quilómetro para o fim da corrida, ou seja, cerca de três minutos. Se dúvidas pudessem teimar ainda em algumas mentes mais cépticas (ou mais crédulas, depende do ponto de vista), não era possível continuar a alimentá-las: Álvaro Meneres era o próximo presidente e Ediberto Faneco o vice-presidente, cargo que, segundo a legislação em vigor, compartilharia durante alguns meses com o actual presidente. Pelo menos nisso a legislação era sábia: afinal de contas, não se pretendia que mudasse alguma coisa no governo com a mudança de caras no topo da hierarquia!...
O que isto significava era que cabia a Meneres dar início à cerimónia. Coisa que ele fez, com o tradicional ar de auto-suficiência dos vencedores da Tona.
— Então, parece que essa cadeira vai mudar de dono não tarda nada? — perguntou em acto retórico, com um largo sorriso e olhando em volta, pondo uma mão camarada sobre a perna esquerda do Presidente — Não há dúvida que a Tona é sábia! — acrescentou mais alto, arrancando gargalhadas de toda a barquinha. A frase era ritual, as gargalhadas também.
— Sábia será, habitualmente, mas há anos em que parece que fica com a sabedoria toldada — respondeu o presidente, articulando outra frase ritual que servia apenas para preparar aquilo que verdadeiramente interessava, a troca de frases originais, cuidadosamente elaboradas durante meses pelos gabinetes dos candidatos que se achavam com probabilidades de vitória ou de conquistar uma posição de relevo na corrida e na hierarquia do Estado. A esmagadora maioria dessas frases ficava por dizer, claro, sendo quase todas recicladas para utilização em Tonas posteriores, onde, regra geral, voltavam a ficar guardadas no interior das gargantas dos candidatos derrotados. Ou mesmo das dos vencedores, que eram obrigados a desperdiçar preciosos segundos com frases rituais como a que o presidente lançou de seguida:
— Em todo o caso, desejo-lhe sorte. Só a sorte o salvará... e à nação.
— Muito obrigado, meu caro vice-presidente.
— Ainda não, ainda não. Não queira assumir o cargo antes das eleições. Não seria democrático.
— Ah, mas está tão quase! Não tenho qualquer intenção de usurpar o cargo, mas o meu caro amigo pode ir-se habituando desde já ao seu novo título. Até porque espero que o mereça mais do que mereceu o de presidente... a bem da nação.
— Oxalá, caro Meneres, oxalá. Gostaria muito de ter uma vice-presidência calma e não ser obrigado a remediar muitas vezes os seus enganos. Eu e aqui o amigo Faneco, claro. Mas não tenho grandes esperanças, infelizmente.
Faneco, ao ver-se metido na conversa, não se fez rogado:
— Nem eu, caro amigo, nem eu. Meneres em presidente... enfim... a Tona saberá dar-me a mim o lugar na próxima edição, se Deus quiser. Até lá, resta-me zelar pelos interesses do Estado da melhor maneira possível, neste lugar secundário e insuficiente para as verdadeiras necessidades do país.
— Se a história contar para alguma coisa, caro Faneco, na próxima Tona voltará para o mesmo anonimato onde esteve todos estes anos. — mais gargalhadas — Mas temos de lhe reconhecer uma qualidade: você é persistente. É qualidade de vulto. Não lhe encontro muitas mais, mas essa tem com abundância.
Aqui o presidente resolveu fazer coro com o seu futuro substituto:
— É bem verdade. A persistência é tanta que deve preencher por completo o depósito de qualidades aqui do amigo Faneco, não deixando espaço nenhum para outras que pudessem eventualmente tentar entrar.
Todas estas pequenas agressões eram sublinhadas pela multidão com oohs e aahs e aplausos e pequenas e grandes gargalhadas, e um ou outro assobio, uma ou outra vaia. Meneres tinha obviamente os favores dos presentes, e tudo o que dizia era sublinhado por palmas e risos, comentado e discutido em tom elogioso. Pelo contrário, os seus dois futuros vice-presidentes eram apupados, e os comentários da multidão, trocados entre vizinhos, mas num tom de voz que era com frequência suficientemente elevado para que os políticos a ouvissem, eram insultuosos. Mesmo a última frase do actual presidente, embora não atacasse Meneres e sim o Faneco, foi acolhida apenas por alguns risos espaçados, que só se tornaram mais fortes quando os presentes notaram que Meneres se dignou conceder um sorriso ao seu antecessor. Perdão: futuro antecessor.
Fora da barquinha, os cidadãos anónimos que pretendiam sê-lo para sempre (ou pelo menos não deixar de o ser por algo tão pouco conceituado como a política) concentravam-se em casas particulares e espaços públicos, já sem grande interesse nos vários desfechos da Tona, pois nessa fase da corrida já eram sabedores do seu futuro enriquecimento ou empobrecimento por via das apostas que já se encontravam quase todas de resultado definido. Mas mantinham ainda os sentidos presos aos media. A sessão de insultos entre os políticos de topo no país, ainda que não muito longa, era grande campeã de audiências e poucos a perdiam de bom grado, divertindo-se o povo com tudo o que era dito, comentando os méritos e deméritos de cada um. Ou antes, comentando os deméritos, que mérito era coisa quase nunca atribuída pela população a qualquer dos candidatos, vencedores e vencidos por igual, e como consequência os comentários que se faziam ouvir fora da barquinha eram invariavelmente insultuosos. Naquele ano, uma amostragem aleatória pelos locais onde se reuniam mais de duas pessoas a fim de assistir à parte final da Tona poderia resultar em comentários como “O cara-de-fuinha lançou uma piadinha nova, sem graça nenhuma”, ou “esses cabrões só querem é tacho”, ou “já viste a cara daquele idiota ali por trás do presidente? Aquele sarapintado, com um risinho estúpido nas trombas? Quem é o gajo? Pensará que está no circo?”, ou “uma bomba naquele dirigível resolvia os problemas todos da malta, que belo seria o estoiro”, ou “tás a ver o casaquinho do Meneres? Cem por cento sintético, feito de derivados do petróleo. Aquilo vale uma fortuna! Raios partam o gatuno! E a gente aqui a contar tostões!”, ou outras frases de igual teor e idêntica ou superior virulência, apenas limitada pelos comentários curiosos relativos ao ET, como “que raio de bicho é aquele?”, “estes extraterrestres conseguem ser mais feios que a minha sogra!”, “o monstrinho não pára quieto, já viste? Parece que lhe meteram um dedo nalgum sítio esquisito...”, “ó Maria, já viste aquelas coisas sempre a mexer? Era aquilo que tu querias?”, ou outras semelhantes, que é bem sabido que o povo nem sempre se destaca pelo bom gosto, tolerância e elegância.
A sessão desenrolou-se assim, segundo os moldes habituais e sem grandes novidades, até que o presidente introduziu na conversa o tema do ET. Fê-lo, estrategicamente, segundos antes de Hermínio Eiró cortar a meta, quando o Meneres já fechava os punhos e começava a mostrar os dentes, preparando-se para se lançar, de pulo, em celebração de vitória, uma dança ritual e coreografada em que o presidente eleito simulava, quase sempre, uma euforia incontrolável durante alguns segundos, logo porém controlada, pois era preciso esperar até que todos os atletas ainda em prova atravessassem a meta antes de prosseguir com as cerimónias oficiais. Para evitar que a espera se prolongasse demasiado, a partir do momento em que o primeiro corredor terminava a sua corrida, os atletas com mais de dez minutos de atraso iam sendo desclassificados em sequência inversa à sua posição na corrida. Esta regra fora instituída depois de um dos anteriores presidentes ter criado uma crise institucional, quando percebeu que iria perder a Tona, ao instruir um dos seus atletas a deitar-se no chão e aí ficar indefinidamente, permanecendo como presidente interino até que a fúria daquele que teria sido eleito acabou por desencadear (isto segundo as más línguas; nunca houve provas) o atropelamento do atleta, quase duas semanas mais tarde. O atropelamento, seguido de fuga, por um veículo de combustão interna que nunca chegou a ser encontrado, deu-se à noite, enquanto o atleta dormia na tenda que entretanto almas caridosas (provenientes do palácio presidencial) tinham erguido no passeio. A discreta segurança colocada no local, à paisana, não pôde fazer nada além de sair precipitadamente do caminho do veículo.
Estava, portanto, o Meneres pronto a soltar o seu grito de vitória, já com os punhos erguidos e o corpo tenso em busca do momento do salto, quando o presidente se virou para ele e disse:
— Antes de perder o controlo, amigo Meneres, deixe-me felicitá-lo pessoalmente pela brilhante vitória nesta Tona, e gostaria de aproveitar para lhe transmitir de imediato, num gesto de boa-vontade e no mais elevado espírito de colaboração democrática, a responsabilidade pelo mais importante dossier que se encontra neste momento nas mãos do meu gabinete.
Bastou este discurso para fazer Meneres perder o ímpeto. Aliás, o vencedor da Tona nem viu o seu atleta cortar a meta. Nesse momento estava o presidente a articular a palavra “dossier”, com um sorriso bondoso nos lábios, saboreando o sucesso em prender a atenção do seu sucessor. Este, terminada a frase presidencial, ainda olhou para baixo, para a corrida, mas apenas para soltar um ruído desapontado quando viu que Eiró já celebrava, alguns metros para além da meta, rodeado de juízes que o encaminhavam para o controlo antidoping, e de técnicos que transportavam discretamente amostras limpas da sua urina, fezes, sangue, linfa e mais alguns fluidos corporais que iriam servir para substituir as amostras retiradas para análise. Mais tradição.
Meneres baixou os braços, desalentado mas resignado e dispôs-se a ouvir:
— Sim? E que dossier tão importante será esse que tem de ser transmitido precisamente agora?
O presidente abriu mais o sorriso e fez um gesto para trás das costas, dizendo apenas:
— Este.
Atrás das costas do presidente e dos demais candidatos, como se sabe, estava o hoog e a sua pequena comitiva de técnicos. Serra, depois de tentar sem sucesso uma série de outros métodos, tinha por fim conseguido acalmar o extraterrestre, comparando aquele momento do cerimonial terrestre a um nascimento hoog, o que muito comovera o embaixador. Quando Serra dera aquela explicação, já com a exasperação bem patente numa voz que começava a tomar uma intensidade inadequada à solenidade do momento, o ET tinha parado momentaneamente de contorcer-se, mas provavelmente tinha dito qualquer coisa, visto que o tradutor automático ainda ronronou:
— Oh! Ditoso Africano, que a clemência / Divina assim tirou de escura treva! Iiiih! Que altamente! Sou um buraco fundo até chegar ao fundo! — antes de se silenciar durante os minutos seguintes.
O ET estava, portanto, silencioso e imóvel quando o ainda presidente o indicou ao seu sucessor com aquele gesto displicente. Meneres olhou para trás, franziu o sobrolho, resmungou um como-está-minha-senhora e um par de como-está-meu-caro-amigo, que receberam os murmúrios adequados em resposta, e inquiriu:
— Mas ouça lá, isto não pode esperar pela minha tomada de posse?
— Não, não, Senhor Presidente! — respondeu o ainda presidente, tratando pela primeira vez o rival pelo título, pondo itálico na palavra, salientando-a bem — Afinal de contas, trata-se do primeiro contacto presencial com uma espécie inteligente vinda de outro planeta! Temos de prestar-lhe o máximo de atenção e é imperativo que a transição de responsabilidade da minha administração para a sua se faça com a máxima celeridade. O Senhor Presidente — outra vez o itálico — não quererá por certo desrespeitar os hoog, aqui representados por este nosso convidado, pois não?
— Hum... não... suponho que não. E ele está de boa saúde? Parece muito quieto.
— De óptima saúde, Senhor Presidente, de óptima saúde. Não podia estar melhor. Aqui a equipa do dr. Arlindo Serra, Chefe de Protocolo Para Contactos com Espécies não-Humanas e antigo colaborador de primeira linha do Projecto SETI, tratou do nosso convidado como se de um filho pródigo se tratasse. Não é verdade, Serra?
O interpelado engasgou-se. Aquilo não podia acontecer-lhe! Não podia! Não a ele!
— Aaa... C-claro, claro, Senhor Presidente. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para... hum... dar... hum... proporcionar ao Senhor Embaixador a melhor estadia possível no nosso planeta.
A cada uma daquelas palavras, Serra sentia-se cada vez mais ridículo, cada vez mais encalacrado, cada vez mais encarnado. E isso não melhorou nada com a intervenção seguinte daquele que iria deixar de ser seu chefe nos minutos mais próximos:
— A equipa do dr. Serra é do mais competente que se encontra na nação. O Senhor Presidente verá.
Meneres não tinha ficado muito convencido, e o seu olhar desconfiado continuava a saltitar do ET para as figuras descompostas dos dois cientistas e do estafeta, e destas para o rosto radiante do seu antecessor no cargo.
— Hum... bom... se tem de ser, seja — acabou por dizer. — Apresentem-me lá ao Embaixador... hum... aqui o amigo tem nome?
Serra, sem saber bem se a pergunta lhe era dirigida, ficou calado, a olhar, comprometido, para o ainda presidente. Este arqueou as sobrancelhas, com um sorriso irónico a bailar-lhe nos lábios:
— Serra?...
— Aaah... sim... bom... hum... julgamos que sim, embora possa ser apenas um título honorífico com conotações tanto familiares, como individuais, ou até institucionais. Não sei até que ponto está o Dr. Meneres familiarizado com as estruturas genealógicas dos hoog, mas...
— Não estou — interrompeu o presidente eleito —, e agradecia que a informação me fosse dispensada com um mínimo de rodeios. O ET tem nome? Sim ou não? E se sim, que nome é esse?
Serra engoliu em seco. Este novo presidente parecia ser ainda pior que o anterior.
— Pensamos que sim e que o nome é Agtar do Ninho de Madeira Verde e Mastigada, senhor... aaaa... Presidente?...
— Agtar do quê?!
— Se me deixar explicar, Senhor Presidente, os hoog vivem em agrupamentos semelhantes a clãs, que...
— Deixe, deixe. Madeira verde e mastigada, não é? Seja. Não me parece que me interesse muito saber de onde vem tal nome — Meneres olhou com atenção para o hoog, que permanecia imóvel, se não se contasse com pequenas tremuras que circulavam logo por baixo de certas partes da sua pele. — Suponho que ele fala?
— Os hoog dispõem de um conjunto alargado de formas de comunicação, que inclui gestos e vários tipos de vocaliz...
— Você chama-se Serra, não é? — voltou a interromper Meneres.
— Aaaa... sim, senhor.
— Doutor Serra?
— Sim senhor.
— Doutor em quê?
— Bem... originalmente em astronomia, mas...
— Muito bem — interrompeu de novo o vencedor da Tona, erguendo a mão. — Uma vez que é doutor, suponho que poderei assumir que compreende o significado da expressão “mínimo de rodeios”?
Serra começava a irritar-se. Estava a ficar farto daquele enfatuado autoritário que já dava ordens e distribuía sarcasmos com arrogância majestática mesmo antes de ser formalmente empossado no cargo.
— Desculpe a franqueza, Senhor Presidente, mas as coisas não podem ser assim.
— Ah não?! E é você quem diz como as coisas devem ser?
— Senhor Presidente, com o devido respeito, se deseja ficar na posse de informação incompleta e se assume a responsabilidade de tomar decisões sem conhecer todos os dados, é consigo. Mas o meu dever é fornecer-lhe o máximo de informação que me for possível recolher, para que as suas decisões sejam baseadas em factos o mais concretos possível. Aquilo a que o Senhor Presidente chama “rodeios” são dados que vão ser-lhe úteis mais tarde ou mais cedo, mesmo que agora pareçam ser irrelevantes, e...
— Meu caro futuro subordinado — interrompeu uma vez mais Meneres, erguendo de novo a mão mas mantendo um ar bonacheirão e simpático, um sorriso cativante e um penteado impecável — se quer manter o cargo, aconselho-o a não se pôr tanto em bicos de pés. Com certeza que há no país gente tão qualificada como você para...
— Não há — interrompeu desta vez Serra, irritadíssimo, sentindo uma intensa onda de vermelhidão a subir-lhe às orelhas. — Mas é que não há mesmo!
Meneres calou-se, surpreendido pela audácia do Chefe de Protocolo. Percorreu-lhe a silhueta com olhos de onde o sorriso tinha desaparecido. Esquadrinhou a roupa, sintética mas de baixa qualidade, os sapatos, de ténis, como mandava a moda das altas esferas, mas sem nenhum logótipo de alguma grande marca do passado (Meneres calçava ténis assinados por nada menos que quatro grandes marcas dos séculos XX e XXI), dizendo apenas Buk em substituição, a bata, que mais parecia uma paleta coalhada de tinta seca e estaladiça que começava a desfazer-se em pó e a fragmentar-se em grandes bocados que se desprendiam e caíam no chão da barquinha opacizando o diamante, prejudicando a visão da Tona, na qual continuavam a chegar concorrentes atrasados, mas onde já se via o carro-vassoura, nome por que era conhecido o carrinho eléctrico que desclassificava retardatários ao ultrapassá-los, deslocando-se à velocidade do vencedor da corrida. Meneres percorreu ainda com o olhar o cabelo desalinhado do chefe de protocolo, a ausência de um casaco, fosse ele qual fosse, a inexistência do mínimo vestígio daquelas pequenas coisas que identificam a distinção de um indivíduo perante os demais. O sorriso regressou-lhe lentamente ao rosto, mas vinha diferente, carregado de ameaças e cautelas.
Tinha todo o ar de um zé-ninguém, aquele tipo. Mas quando os zés-ninguém conseguem ascender a posições que os convencem de que podem impunemente interromper presidentes, era necessário tratá-los com cuidado.
Meneres olhou para o seu antecessor. Ali sim, havia sorrisos, a um tempo divertidos e sarcásticos, sorrisos que discursavam em silêncio, dizendo vês, pá? Eu bem te disse que era imprescindível que se tratasse disto agora. Imprescindível para mim, claro está!...
— Seja, seja — disse por fim o presidente eleito, devolvendo o olhar ao chefe de protocolo. — Deixemos isso para mais tarde. Agora temos coisas mais importantes em que pensar. Então o nosso amigo baixinho fala.
Era uma afirmação, não uma pergunta, e Serra limitou-se a assentir.
— E suponho que entende o que nós dizemos, também.
— Sim, desde que o tradutor automático esteja a funcionar — Serra indicou o aparelho que repousava, de momento, no regaço da Grandelasca. — Neste momento está desligado.
— Isto é um tradutor automático?! — surpreendeu-se o presidente-eleito, enquanto fazia uma careta de nojo e recuava alguns milímetros. — Hum... bom... suponho que você, afinal, é capaz de ser útil. Ligue lá essa coisa. Vamos dar umas palavrinhas ao embaixador. Tem é de ser rápido, que a Tona está quase a acabar e eu vou estar muito ocupado a transformar aqui o nosso amigo em vice-presidente... o que será um grande prazer — concluiu, lançando um sorriso adequadamente prazeroso ao seu antecessor.
Serra fez o que lhe pediram, e murmurou para o bocal:
— Sua Excelência Agtar do Ninho de Madeira Verde e Mastigada, está a ouvir-me? A cerimónia que exige silêncio chegou a um breve intervalo, e o Senhor Presidente deseja conhecê-lo.
— Que cerimónia é essa que exige silêncio? — perguntou o presidente-eleito, enquanto o tradutor tremia.
Arre!, pensou Serra, enquanto tapava com a mão o bocal. Isto não pode correr mal!
— Só um momento, Senhor Presidente. A máquina tem alguns problemas na tradução, e tivemos de fazer algumas adaptações. O alienígena poderá soar-lhe algo estranho.
Meneres encolheu os ombros.
— Bem... é suposto que um alienígena soe estranho — declarou, o que arrancou algumas gargalhadas da assistência, que não perdia pitada do que se passava, mas tinha estado invulgarmente silenciosa nos últimos minutos. Se calhar precisamente para não perder pitada do que se passava... — Que raio se passa com ele?! — perguntou depois, alarmado, quando o hoog começou a contorcer-se e a soltar trinados que, por serem em ultrassons, ninguém ali conseguia ouvir.
— Não se passa nada, Senhor Presidente. Conforme eu tentava explicar-lhe com os “rodeios” de há pouco, o modo de comunicação dos hoog não é bem igual ao nosso.
Ah! O doce sabor da vingança! Serra até já sorria!
O sorriso, porém, evaporou-se quando o tradutor automático começou a falar:
— Baril, maan! Isto tá a ser uma tripe! Vocês são bué da curtidos! — um simulacro de gargalhadinha — Sustentava contra ele Vénus bela / afeiçoada à gente lusitana / por quantas qualidades via nela. Mas, meu, pá, chavalo, eu já conheço o presidente! É aquele bacano ali de gadelha preta. Tás-te a passar, ó Adamastor? Em tão longo caminho e duvidoso / por perdidos as gentes nos julgavam?
Durante alguns segundos, não se ouviu um som. O incongruente silêncio foi interrompido por um ruído estrangulado proveniente do nariz do presidente demissionário, o “bacano de gadelha preta”, que procurava, com enorme dificuldade, não deixar sair para o exterior as gargalhadas que o consumiam por dentro. Meneres, por seu turno, tinha empalidecido e, muito direito, perguntou, totalmente esquecido da estranheza que se esperaria de um extraterrestre, e até da correcção da gramática:
— Mas que mil diabos foi estes?!
Serra pensava furiosamente. Claro que o ET continuava drogado. E claro que o tradutor continuava a debitar versos em arcaico. Afinal de contas, nada tinha acontecido nos últimos minutos que pudesse alterar ambas as situações. Aquilo ia dar barraca. A não ser que conseguisse arranjar um pretexto qualquer para calar o extraterrestre e adiar as apresentações para mais tarde. Mas isso conseguia-se como? Uma desculpa! Serra precisava de uma desculpa com a máxima urgência!
Entretanto, o ET contorcia-se, e o tradutor ronronou de novo:
— Ó baril, quem é este camelo alto cheio dentro de dúvida e receio?
Tarde demais.
— Camelo?! — indignou-se o presidente eleito, por entre uma nuvem de gargalhadinhas sufocadas, impossíveis de reprimir por todos os que não conseguiram chegar a tempo aos desumorizadores, e uma ou outra (como as soltadas pelo presidente demissionário) bem sonoras — O tipo chamou-me camelo?! Serra, espero que tenha uma explicação para isto. Uma explicação muito boa. Senão, com ou sem gente qualificada para o substituir, o seu único caminho é a porta da rua.
Tarde demais. Muito tarde demais.
— Senhor presidente, eu... — começou Serra, mas calou-se. Valeria a pena? O ET ia continuar drogado durante horas, ia provavelmente, e a não ser que algo o calasse, continuar a atirar com frases bombásticas como aquela durante todo esse tempo, ia continuar, portanto, a enterrá-lo cada vez mais, gerando pretextos em cima de pretextos para o seu despedimento, tudo o que dissesse agora poderia ser posto em cheque a qualquer momento por alguma frase idiota do próprio ET... valeria a pena?
Bem... o trabalho é bem pago. Portanto, se calhar, até vale.
— Como lhe disse, Senhor Presidente, há dificuldades de comunicação, que passam por problemas no próprio tradutor automático — acabou por explicar, cingindo-se à verdade. Ou a uma parte da verdade. — Aquilo que o tradutor diz não é precisamente aquilo que o hoog expressa: trata-se apenas de uma adaptação automática, nem sempre particularmente fiel, e cheia de anacronismos em verso. A máquina necessita ainda de alguns aperfeiçoamentos, mas já nos permite comunicar satisfatoriamente durante a maior parte do tempo — concluiu, apresentando as palmas das mãos como que a pedir clemência.
Meneres virou-se para o estafeta, ignorante do seu estatuto, e confundindo-o com um técnico:
— É verdade, isto que ele diz?
O pobre estafeta, que procurava esconder-se atrás de todos, sem coragem para desertar completamente, mas fazendo os impossíveis por passar despercebido, o que já se tinha tornado num padrão que se repetia sempre que as coisas não pareciam estar a correr lá muito bem, sufocou um guincho de susto ao ver-se atirado assim para a ribalta, ao ver-se na iminência de expor toda a sua ignorância à luz crua dos holofotes do planeta.
— A... acho que... que sim, Senhor Presidente... — gaguejou, num murmúrio quase inaudível, que se sumia ainda mais à medida que avançava pela frase adiante, fazendo com que as últimas sílabas da palavra “presidente” tivessem sido apenas articuladas com os lábios.
— Acha?! Que raio de resposta é essa?! Você...
— Ele é apenas um estafeta, Senhor Presidente. Não pertence à minha equipa. Limitou-se a ajudar-me a trazer o equipamento — atalhou Serra, antes que o Meneres despejasse sobre o outro toda a sua irritação.
— Oh, Motosserra, mas quem é afinal este infiel? — atalhou, por sua vez, o hoog, através do tradutor automático, dando mostras de um sentido de inoportunidade impecável.
Serra olhou de relance para o Meneres. O pavãozinho estava a ponto de explodir. O rastilho, já de si bastante curto, estava aceso e sibilava, distribuindo pequenas faúlhas em redor sob a forma de inspirações pesadas. Aquilo era uma nuvem de trovoada prestes-oh-tão-prestes a rebentar em raios e coriscos. Bastava um sopro e... bum!
Serra dava tudo para não estar ali. Encolheu-se ao dizer:
— Senhor Presidente... — e parou porque ouviu um eco das suas palavras numa voz de mulher. A Grandelasca, até aí silenciosa, resolvera intervir, recorrendo à mais terrível arma ao dispor no seu arsenal: a sedução.
— Senhor Presidente — ronronou, entre trejeitos — o que diz o dr. Serra é toda a verdade. Esta máquina horrível, que me sujou a bata toda, está avariada. O dr. Serra bem tentou repará-la, mas o fabrico é dos hoog, que têm uns hábitos pavorosos (mas não têm culpa, coitadinhos, foram feitos assim pela mãe natureza), e não nos explicaram ainda tudo sobre ela. Não foi possível fazer mais do que isto.
Meneres ficou-se a olhá-la. Primeiro com olhos que brilhavam de irritação, mas depois com uma expressão cada vez mais suave. Os músculos dos maxilares distenderam-se e o contorno da face voltou a ser arredondado. As sobrancelhas arquearam-se. As comissuras dos lábios subiram de forma quase imperceptível.
Mesmo assim, foi ainda com voz dura que interrogou:
— E a menina é?...
— Doutora Joanina Grandelasca, técnica de segunda classe, destacada para o Projecto Hoog pela Universidade Veduplo Arbusto d’Oliveira. Trabalho sob a direcção do dr. Serra nos artefactos hoog que o embaixador nos ofereceu, em especial no sintetizador — respondeu a Grandelasca, pestanejando os seus enormes olhos azuis.
Meneres cedeu por completo. Mas tentou salvar as aparências:
— Hum... bom... seja. Por esta vez, passa. Mas para evitar mais insultos involuntários, acho melhor concluirmos por agora as apresentações. O embaixador poderá apresentar as suas credenciais mais tarde, em conjunto com o resto do corpo diplomático. Isto afinal — rematou, olhando para o presidente demissionário — foi uma grande perda de tempo e um gasto de paciência absolutamente desnecessário.
— Lamento imenso, meu caro Meneres — disse aquele que ainda era detentor do mais alto cargo do estado. — Se imaginasse que iria ser assim, nunca lhe teria sugerido que a apresentação se fizesse logo. As minhas desculpas.
Meneres olhou-o com um sorriso amarelado nos lábios.
— Foi um infeliz incidente, de facto. Mas já está esquecido, garanto — afirmou, mostrando a todos que não só o incidente não estava esquecido como não iria estar tão cedo e iria ter consequências para alguém.
O ainda presidente não se deixou intimidar. Retirado do cargo, com a reforma garantida por toda a vida, igual a metade do salário mensal que auferia enquanto Presidente, o que era, de qualquer modo, uma fortuna, acumulando ainda durante algum tempo com o cargo de vice-presidente e depois disso com a respectiva reforma, ele tinha tudo para se tornar praticamente intocável. No mercado dos favores o dinheiro fala mais alto, e dinheiro era coisa que nunca mais lhe iria faltar.
— Só posso agradecer a sua magnanimidade — disse, irónico, mantendo o seu sorriso travesso.
— Sim. Pois. O prazer é meu. — respondeu Meneres, olhando em volta. — Ah! Vejo que já estamos a descer.
Com efeito, o dirigível começava a encaminhar-se lentamente para os jardins do palácio presidencial, onde iria ter lugar a cerimónia de transferência dos poderes, e onde já começavam a chegar os primeiros corredores, vindos do controlo anti-doping e de um duche rápido, já com a respiração regularizada e sem suar muito (embora mantendo um aspecto adequadamente luzidio e cansado, porque a Tona pressupunha esforço e era de bom tom aparecer exausto na cerimónia). Funcionários afadigavam-se em torno de um pequeno palco erguido ao lado do pódio, colocando cadeiras e sobre elas pequenas placas com os nomes dos candidatos, na precisa ordem da classificação das suas equipas. A multidão de espectadores dividia-se entre os que se aproximavam dos jardins a fim de assistir ao vivo à cerimónia e aqueles que, terminada a corrida e finda a pequena sessão de troca de piropos no dirigível (este ano prejudicada sobremaneira pelo caso do extraterrestre que, embora com o interesse do insólito, tinha de qualquer modo cortado o espectáculo a meio), haviam perdido o interesse e se afastavam, de regresso às suas origens.
No dirigível, os políticos haviam virado costas ao hoog, o qual, sem obter de ninguém uma resposta à sua última pergunta e vendo o chão aproximar-se dos seus pés, se tinha recolhido de novo a uma contemplação que na prática era muda. Se não estivesse sob o efeito da hoogabis, o mais certo é que já tivesse voltado a desmaiar. Mas, drogado como estava, olhava para a aproximação do chão com um fascínio divertido, soltando trinados, alguns dos quais suficientemente graves para serem audíveis a quem estava por perto, mas que o tradutor automático não se dava ao trabalho de traduzir, o que talvez indicasse que não eram traduzíveis.
Serra suspirara de alívio assim que os políticos tinham passado a ignorá-los. Chegara-se à Grandelasca e agradecera-lhe com veemência, num sussurro segredado ao ouvido durante muito mais tempo e de muito mais perto do que teria sido necessário, enquanto lhe segurava com firmeza num braço (não se atrevendo a voltar a tocar em qualquer outra parte do corpo da técnica), como se tivesse receio de que ela lhe fugisse. Coisa que ela teria feito, de facto, não fossem todos os olhos, de pessoas e de aparelhos de registo de imagem, que ainda se dirigiam, curiosos, para eles.
Quanto ao estafeta, passado o susto, regressara-lhe à boca o sorriso, se fosse possível ainda mais deslumbrado do que antes. Não só estava ali, como tinha sido interrogado pelo próprio presidente eleito, ao vivo e em directo, perante todas as câmaras mediáticas do país e arredores. Interrogatório de que, achava, se tinha saído particularmente bem. O estafeta sonhava já com súbitas e irresistíveis oportunidades de carreira, tantas e tão constantes que ele se daria ao luxo de recusá-las a todas, à espera da tal, da oportunidade final e última, daquela que determinaria todo o seu futuro e dos seus descendentes.
Quem sabe, talvez até entrasse para a política!...
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
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