segunda-feira, 24 de novembro de 2008

18.

O DIRIGÍVEL TOCOU NO CHÃO sem grande suavidade, ressaltando um par de vezes e só se imobilizando por completo quando os ajudantes de terra o prenderam firmemente a grampos que se erguiam do solo, por meio de cordas de nylon que serviam ao mesmo tempo como material indispensável ao serviço do dirigível presidencial e como objecto de ostentação da riqueza do Estado. Nylon sempre era nylon...

Os humanos presentes na barquinha suportaram estoicamente os solavancos. Aquele período de abanos e sacolejos era coisa habitual e praticamente inevitável, mesmo que a atmosfera estivesse plácida e sem qualquer aragem, e por maior que fosse a experiência e perícia do piloto, humano ou automático: a descida não podia desenrolar-se com demasiada lentidão, sob pena de aborrecer quer a assistência, cá em baixo, quer os próprios ricos e poderosos, lá em cima, dentro do dirigível. Assim, era necessária uma certa velocidade descendente que, mesmo com o disparo de jactos de manobra, que atiravam para baixo torrentes de ar sob pressão que faziam voar do jardim papéis, folhas, raminhos e saias, nunca se anulava por completo antes do embate no solo.

Era hábito, e os passageiros estavam habituados. Os candidatos, membros do governo e detentores das principais fortunas tinham permissão para ocupar parte do precioso espaço da barquinha com cadeiras e, portanto, poucos efeitos sofriam na aterragem para além de um momentâneo aumento na pressão que sentiam nos respectivos traseiros. As personagens secundárias, no entanto, ficavam todo o tempo em pé, e quando o dirigível embatia no solo, não raro era que o seu equilíbrio sofresse um abalo mais ou menos severo. Muitos aproveitavam-se disso, agarrando-se bem a amigos ou amigas, conhecidos ou desconhecidas que se gostaria de passar a conhecer, agarrando-se um pouco por todas as zonas dos corpo, quer as púdicas quer as que não o eram lá muito, com uma curiosa preponderância destas últimas sobre as primeiras. Outros aproveitavam-se igualmente, mas de forma menos benigna, utilizando o desequilíbrio para socos ou cotoveladas, puxões de cabelos ou empurrões. Havia quem vivesse na expectativa das viagens em dirigível (e isto acontecia em qualquer uma, não só naquela que o facto de assistirem à Tona proporcionava aos figurões), planeando vinganças e apalpões, estaladas e esfregadelas. Outros, menos calculistas, limitavam-se a aproveitar o momento e agarravam a oportunidade quando ela se proporcionava.

Quando o dirigível embateu no solo pela primeira vez, o hoog, que ignorava por completo esta peculiaridade técnica dos aparelhos mais leves que o ar, tecnologia nunca desenvolvida pela sua espécie, desequilibrou-se, deu um encontrão na Grandelasca e teve de fazer girar um dos seus braços como uma ventoinha para retomar a posição normal, enquanto guinchava em ultrassom qualquer coisa que o tradutor automático traduziu numa única palavra:

— Porra!

Serra balançou, mas aguentou-se nas pernas com facilidade, o que já não aconteceu com a Grandelasca que, depois do encontrão do extraterrestre, se derramou sobre o Chefe de Protocolo, agarrando-se-lhe com força para evitar cair. Serra não se fez rogado, e aconchegou-a bem.

Estavam a separar-se, por entre uma floresta de desculpas, a Grandelasca vermelha até ao couro cabeludo, vá-se lá saber se de vergonha se de irritação, o chefe de protocolo sem conseguir reprimir um sorrisinho satisfeito que insistia em encurvar-lhe os cantos da boca e enrugar-lhe os cantos dos olhos, quando o dirigível voltou a bater no chão. Serra precipitou-se para o ET, segurando-o, e à Grandelasca de caminho, muito embora desta feita nem um nem outro se tivesse desequilibrado por aí além. O hoog terá soltado outro trinado, visto que o tradutor disse, num grito que até conseguiu fazer parecer irritado:

Oh! Que não sei de nojo como o conte!

Quanto à Grandelasca, olhou de soslaio o Chefe de Protocolo, franzindo o sobrolho, e desembaraçou-se das suas mãos com firmeza mas delicadamente. Outro bosque de desculpas, desta feita só no sentido Serra-Grandelasca, antecedeu o terceiro e último impacto da barquinha no solo, já muito atenuado, o que não impediu que a Grandelasca se tivesse voltado a “desequilibrar” com grande violência, caindo por cima do Chefe de Protocolo, e espetando-lhe com o cotovelo direito na boca do estômago, o que fez com que Serra desse dois passos para trás, dobrando-se ao meio e tossindo. A Grandelasca aproximou-se, sorridente, dizendo com uma voz em que o sarcasmo era evidente:

— Oh, coitadinho! Aleijou-se? É preciso azar. Veja só onde o meu cotovelo foi bater?...

O hoog, aparentemente, também ficou preocupado. Pelo menos podia ser assim interpretada a críptica mensagem que saiu logo em seguida do tradutor automático, depois de uma breve sessão de contorcionismo e enquanto o ruído viscoso das ventosas se aproximava:

— Motoserra, man, caiu-te o tecto?

Felizmente a dor de estômago assemelha-se à de cotovelo: dói que se farta, mas passa depressa...

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