A SAÍDA DE TODA AQUELA GENTE da barquinha foi a aborrecida espera do costume, enquanto os pés se arrastavam em passinhos miudinhos e gingados e os empurrões subtis da multidão iam ajudando a forçar o movimento de toda aquela mole humana para as saídas. O problema era que havia mais mole humana do que saídas. O casco de diamante artificial, a fim de manter a sua integridade estrutural e a consequente vantagem sobre outras formas de construção, tinha de possuir o mínimo possível de soluções de continuidade, e assim poucos eram os orifícios que o atravessavam. Duas portas apenas, na zona central do casco, eram toda a comunicação existente entre o interior e o exterior, à parte alguns orifícios tão pequenos que nenhum corpo humano os atravessaria, nem que se encolhesse, torcesse e contorcesse até à impossibilidade. E, embora as portas fossem largas o suficiente para que uma evacuação de emergência não demorasse um tempo excessivo, o cerimonial da Tona não se compadecia com pressas, e as pessoas aglomeravam-se junto à saída enquanto os candidatos iam descendo vagarosamente a rampa, um a um, na ordem inversa da classificação, aplaudidos por apoiantes e vaiados por opositores, o que fazia com que os assobios e os gritos de escárnio fossem ensurdecedores durante a maior parte do tempo. Isso não parecia ter nenhum efeito sobre os políticos, que mantinham, todos eles, sorrisos em tudo idênticos e procuravam ser filmados pelos media na melhor das suas poses, e com o ar próspero e blasé do homem bem sucedido.
O pequeno grupo que incluía o extraterrestre deixara-se ficar para o fim, por medida de precaução, a fim de poupar ao frágil corpo do hoog pisoteios e entalões. Serra, já refeito da cotovelada (embora o estômago ainda lhe doesse sempre que se punha em certas posições, o diabo da louraça era forte!...), assistia ao espectáculo através das paredes da barquinha, com as mãos displicentemente afundadas nos bolsos e traços carrancudos desenhados na cara. A técnica, a seu lado (mas mantendo uma distância de segurança), também assistia ao que se ia desenrolando na sua frente, de braços cruzados, embora devesse estar a pensar noutra coisa qualquer, porque um sorriso trocista ia e vinha nos seus lábios. Tinham entregue ambos os aparelhos ao estafeta, que os segurava, a medo, com mãos trémulas e olhos assustados. Quanto ao ET, observava tudo aquilo com um ar tão indecifrável como sempre.
O ar indecifrável do hoog, entretanto, começou a decifrar-se quando ele de súbito desatou a contorcer-se durante um período relativamente longo, atraindo a atenção dos técnicos, do estafeta e da meia dúzia de retardatários que ainda os cercavam. O tradutor soltou um ruído gorgolejante, e pôs-se a tremer nas mãos do estafeta, que soltou um guinchinho estrangulado ao sentir aquela sensação que lhe pareceu estranhíssima. O ET voltou a contorcer-se, desta vez durante muito menos tempo, e o tradutor finalmente disse qualquer coisa em língua de gente:
— Vocês, man, são uns pândegos. Já chegam perto, e não passos lentos / dos jardins odoríferos formosos. Lá na terra também temos bacanos que fazem destas cenas num vale ameno, que os outeiros fende / vinham as claras águas ajuntar-se / onde uma mesa fazem, que se estende / tão bela quanto pode imaginar-se e vai daí, man, põem ovos, o que é altamente porque se não pusessem ovos a malta já tínhamos bazado toda do tecto pra fora e isso era fedorento.
O quê?!, pensou Serra, estupefacto, mas não teve tempo de elaborar porque o tradutor continuava:
— É mais ou menos assim, bacanos e bacanas e bacanes, que lá na terra os pirilóides são três, o corpo nu e os membros genitais / por não ter ao nadar impedimento / que recebem de Febe crescimento, e vai daí óspois é baril e a malta chafurda um bocado e fica com o espírito cor de pântano luminoso...
Serra olhou a Grandelasca: estaria a entender o mesmo que ele? Pela cor que apresentava, vermelhusca, pelos vistos estava...
— Mas uma cena, Motoserra, não percebo, — prosseguiu o tradutor, enquanto o ET se aproximava de Serra e parava na sua frente — mesmo que a ache uma curte. O prazer de chegar à pátria cara percebe-se, tás a ver?, mesmo se é cor de estrume como o vosso. Mas como é que fazem com aquela trapalhada toda em cima?
— Doutor, ele pensa que...
— Pois pensa.
Uma pausa, enquanto os técnicos olhavam um para o outro, pensativos, interrompida por um estremecimento num dos braços do hoog:
— Falai! Que quereis dizer com “ele cirunvalaciona”, bacanos?
Serra voltou a olhar para a técnica, mas não para vê-la: tentava apenas arrancar do seu cérebro cansado uma solução qualquer para mais aquela confusão.
Bolas, que é demais! Maldito o dia em que decidi meter-me nisto!
— Doutor?... — murmurou a técnica, fazendo um gesto em direcção do tradutor automático, que continuava a estremecer, pendurado de uma das mãos do estafeta.
— Hã? — resmungou Serra, sem perceber.
— Precisamos de falar, doutor — insistiu a Grandelasca, voltando a indicar com um gesto de cabeça o tradutor automático, que resolveu soltar mais um ruído bizarro, seguido de:
— Para julgar, difícil cousa fora. Mas, cum caneco!, tá-me a dar deslizamentos por não me responderem! Falai, criaturas!
— Hã!? — repetiu Serra. Mas depois compreendeu: — Ah! — e acrescentou — Vossa excelência há-de desculpar, mas necessitamos de conferenciar por um momento. É um momento só. — e, com um gesto rápido da mão esquerda, desligou o tradutor automático.
— Ufff... — suspirou logo em seguida — lidar com um ET já é difícil, lidar com um ET e políticos terrestres é quase impossível, mas lidar com um ET, políticos e um tradutor automático com a mania que é poeta épico é de dar em doido!...
Se a Grandelasca acrescentou alguém ao rol de criaturas impossíveis de aturar, fê-lo só em pensamento.
— Pois é, — disse — e agora estamos com um problema sério. O doutor também acha que o hoog se convenceu de que isto é um ritual de acasalamento, não acha?
— Parece que sim. E o pior de tudo é que não dá para falar claramente com ele. A porcaria daquela maquineta não traduz decentemente uma frase, para amostra... Raios a partam! — desabafou Serra. — Que é que a gente faz?
Outra pausa. O ET pôs-se a ventosar para trás e para diante, naquilo que muito provavelmente era uma manifestação de impaciência. E, se o fosse, era a primeira expressão hoog que se tornava inteligível para humanos sem passar primeiro por filtros mecânicos ou biomecânicos, um marco, algo capaz de fazer notícia de destaque em todos os media, assunto para teses de doutoramento ou mestrado, enfim, mais um triunfo da ciência humana.
Mas Serra e a Grandelasca não deram por nada. Tinham mais que fazer do que ficar o tempo todo o olhar para o ET. Tinham o cérebro demasiado ocupado para desperdiçar sinapses em especulações ociosas acerca do significado deste ou daquele comportamento do extraterrestre. Enfim, estavam noutra.
E é assim, às vezes, que não avança a ciência.
— Temos de fazer qualquer coisa... — murmurou a Grandelasca.
— Pois... — resmungou o chefe de protocolo, coçando a cabeça. E acrescentou: — Mas...
— É. — disse a técnica.
Poder-se-ia perguntar para que tinham aqueles dois desligado o tradutor automático, se a conversa que planeavam ter era assim, uma troca de monossílabos murmurados e nada mais. O hoog continuava a movimentar-se para trás e para diante, fornecendo à reflexão dos técnicos um fundo sonoro composto por ruídos de sucção, daquele tipo de som repetitivo e repugnante, capaz de fazer nascer no mais plácido cidadão um nervoso miudinho potencialmente explosivo, o que obviamente não ajudava em nada na busca de uma solução.
Até porque não havia qualquer solução. O ET estava drogado, ponto parágrafo, e drogado-ponto-parágrafo permaneceria durante várias horas; o tradutor traduzia, se calhar, o melhor possível, mas esse melhor possível resumia-se geralmente a um disparate pegado; e as cerimónias terrestres eram o que eram, se bem que para olhos hoog fossem muito diferentes do que eram se vistas através de olhos terrestres.
Tinham entre mãos um choque cultural em estado agudo, uma comunicação problemática e algumas dificuldades cerebrais por parte de uma das partes. Ponto, parágrafo. Nada havia a fazer.
Ou por outra, até podiam fazer alguma coisa: deixar o ET ali e raspar-se os dois, juntos, para qualquer sítio longe da civilização, uma ilha deserta qualquer algures no Pacífico, das poucas que ainda estavam acima de água, um território de novo virgem, cheio de cocos e da mandioca que tivesse lá sido esquecida pelos últimos habitantes antes da evacuação humanitária forçada da década anterior, com populações de coelhos e galinhas enraizadas nos farrapos sobreviventes do ecossistema local, enfim, um lugar onde os dois, juntos, se pudessem esquecer de que um dia tinham conhecido um ET que não dizia coisa com coisa e que tinha de ser drogado se por acaso era elevado muito acima da superfície do planeta, um membro duma espécie que dominava o voo entre as estrelas e que tinha medo das alturas.
Claro que esta ideia passou apenas pela cabeça de Serra. A Grandelasca nunca se lembraria de tal coisa.
Muito menos o ET, que finalmente se fartou de estar à espera, se aproximou do tradutor e, num movimento rápido, o ligou, desatando a tremer e a esbracejar logo de seguida.
Dir-se-ia que estava irritado...
— Oh! Caso grande, estranho e não cuidado! — traduziu o tradutor enquanto o embaixador continuava a gesticular — Oh! Milagre claríssimo e evidente! / Oh! Descoberto engano inopinado! / Oh! Pérfida Inimiga e falsa gente! Mas que borbulham aí entre vocês? Que lamas verdes trocam? Por que não me dão a sabedoria soberana do vosso entendimento? Fónix, man! Se o irmão de gosma não se prepara para fertilizar o pântano, que se passa ali, afinal? E que caçada foi aquela, man? Que cena foi aquela, chavalo? Porque andaram tantos fininhos atrás dum marmelo a tentar apanhá-lo? Na volta não foi caça, man? Será só o prazer de chegar à pátria cara / a seus penates caros e parentes / para contar a peregrina e rara / navegação, os vários céus e gentes? Man! Não percebo nada! Não consigo usar a cachola. Vocês não fazem sentido! Ninguém me explica! Ninguém me explica!...
— Senhor emb... — tentou interromper Serra.
— Ninguém me diz que cena é esta! — continuou a debitar o tradutor, enquanto o extraterrestre se punha a andar em círculos, sem interromper por um segundo os seus estremeções e os movimentos convulsivos dos braços — Tou aqui sozinho no meio de monstros fininhos mas feiosos, que fazem cenas que não têm ventosas nem tentáculos, e ninguém me explica! Oh, perfídia! Oh, anticlímax! Oh, orgasmo seco sem saco! Man! Man! Man! Eu quero a minha mãe, o meu pai e o meu pãe! Quero voltar para o ovo, de novo na desova do povo! Quero bazar, man! Bazaaar! Mas oh! Não me fujas! Assim nunca o breve / tempo fuja da tua formosura! Não posso, man. Não posso. Tenho de ficar aqui, tentar falar com estes nojos, comunicar a supremacia do muco aos infiéis, ganhar...
— Senhor embaix... — voltou Serra a tentar interrom-per...
— ... a confiança destes murcões, destas alcagoitas almariadas, destes sacos de pêlos que não se mexem, ganhar-lhes a confiança pró comércio, pra fazer negócio, pra trocar coisas por coisas, pró lucro, man, pró lucro, pra sair daqui rico, pra...
— Senhor embaixador! Pare! Cale-se! — gritou Serra, agarrando nos braços do extraterrestre.
— ... com peitas, ouro e dádivas secretas / conciliar da terra os principais. Mas nem sei quem são os principais! O irmão de gosma era principal? Seria? Não seria? Oh! Cruel dúvida! Oh! Assombração de mo... — ainda continuou o tradutor a traduzir antes de se lhe esgotarem os dados no buffer.
O que acabou por acontecer. Mas, curiosamente, o tradutor continuou a largar ruídos que se podiam verter em texto mais ou menos assim:
— Muuummmimmmuuuumumumimuummmu...
— Calma, Agtar — disse Serra, ainda agarrado ao braço do extraterrestre. — Nós explicamos, OK? A gente explica tudo, tá bem? Calma. Pronto. Já passou. Calma.
O tradutor automático acabou por silenciar-se.
— Pronto, calma. Já podemos conversar? — interrogou Serra, enquanto soltava o braço e limpava as mãos à bata.
O hoog estremeceu, e o tradutor rosnou:
— Foda-se!
Serra deu um salto para trás, no que foi acompanhado pela técnica, pelo estafeta e pelos dois ou três curiosos que permaneciam ali por perto, agora que o grosso dos passageiros do dirigível já tinha saído e já se tinha ido colocar a jeito de seguir a parte final das cerimónias, a tomada de posse propriamente dita.
— Senhor Embaixador — disse Serra assim que se recompôs, dobrando-se um pouco, por instinto, apesar de saber perfeitamente que o gesto não significava nada para o ET — peço-lhe o mais humilde dos perdões. Lamento se o ofendi de algum modo, mas foi a única forma que encontrei de conseguir conversar com Vossa Excelência de maneira calma e construtiva.
Uns quantos estremeções. O tradutor traduziu:
— São estes os sacerdotes dos Gentios?
— Perdão?
— São vocês os sacerdotes dos Gentios, criatura? Vocês, que agarram, que manipulam, que torcem, que provocam a exsudação da água lilás? São vocês o que de melhor há no vosso planeta? São vocês que corrente de ar?
— Ele pergunta se somos nós os técnicos principais, doutor — murmurou a Grandelasca.
— Percebi — respondeu Serra, um pouco irritado. — Mas ele sabe perfeitamente que sim, não percebo por que raio está agora a pôr essas dúvidas... — e, para o hoog:
— Sim, Senhor Embaixador. Com efeito somos nós.
— E o Irmão de Gosma, quem é?
— Ele refere-se ao anterior presidente, doutor...
— Eu sei! — exclamou Serra, virando-se para a Grandelasca, de cenho franzido. Mas a técnica pestanejou duas vezes, sacudindo os olhos de um lado para o outro, apontando-os alternadamente ao olho esquerdo e ao direito do chefe de protocolo, e o cenho alisou-se como que por magia. — Joanina, por favor. Quando eu precisar de ajuda, peço-ta, sim?
A técnica limitou-se a sorrir, e a apontar com a cabeça para o ET, que estava de novo a gesticular. O tradutor traduziu:
— Criatura! Falo contigo! Quem é o Irmão de Gosma?
— Perdão excelência. O... o Irmão de Gosma era o nosso líder máximo. O nosso... — Serra hesitou. Como soaria em hoog o que ia dizer em seguida? Seria fiel, a tradução? Soaria tão caricata como “irmão de gosma”?
E que adiantava perder tempo com tais reflexões?
— Era o nosso Presidente.
— Era? — soltou o tradutor automático. E desta vez, para variar, a tradução foi tão bem feita que até fez ouvir o itálico.
Serra confirmou:
— Sim, senhor Embaixador. Ou melhor, e para ser preciso, ainda é, mas vai deixar de ser dentro de alguns minutos, assim que se conclua a cerimónia que se desenrola no jardim.
O hoog, assim que a tradução lhe chegou aos ouvidos, deslizou para junto da parede da barquinha. Dali via-se o estrado, que estava disposto perpendicularmente ao dirigível e onde já se encontravam sentados todos os candidatos. Via-se também o púlpito, onde o cerimonial principal iria ter lugar, dirigido por um outro chefe de protocolo, este a sério, um verdadeiro burocrata da boa educação formal, um homem ossudo que respondia pelo nome de Guedes, com uma grande cabeleira branca que lhe emoldurava o sorriso permanentemente inexpressivo, que tratava toda a gente por “Sua Excelência” e que já se encontrava atrás do púlpito a ler para um microfone um papel (mais desperdício arcaizante mas prestigioso), através do qual era dada a conhecer a classificação final da Tona. E via-se, por fim, a zona destinada ao público, dividida em dois sectores bem delimitados: o mais próximo destinado aos passageiros do dirigível e aos media, com várias filas de bancos repletos de gente, e um outro mais afastado, que se prolongava por uma longa rampa ascendente que transformava o conjunto numa espécie de anfiteatro informal, e que era destinado ao público anónimo, embora se encontrasse quase vazio. Mesmo assim, era daí que se iam elevando as manifestações mais ruidosas, gritos de apoio a um ou a outro candidato ou, com maior frequência, longos assobios e vaias repletas de insultos. Tudo normal, portanto.
O hoog observou por alguns momentos o que se ia passando no jardim (nada, visto que a leitura da classificação geral da Tona era longa e monótona, monotonia essa ainda agravada pelas dificuldades do velho Guedes em seguir fielmente o texto. O homem estava meio gagá, e tropeçava em muitos dos nomes dos atletas, que soavam estranhos aos seus ouvidos… e, saídos da sua boca, soavam estranhos a todas os que os ouviam). Depois, estremeceu:
— Isto é, então, um banho de linfa? Que geração tão dura há hi de gente / que bárbaro costume e usança feia! E eu a pensar que vocês eram uns bacanos! Afinal retiram a linfa aos vossos chefes. Man!... Que cena!
— Não, não, não — disse Serra, muito depressa — não se trata de sacrifícios!...
O hoog, quando a tradução lhe chegou, olhou para Serra.
— Motosserra, fala com sentido! Que treta é essa de não haver artifícios? A que propósito vem isso?
Arre! Mais uma bacorada do tradutor!, pensou Serra, irritado, enquanto abanava a cabeça.
— Perdão, Excelência. Queria dizer que não há derramamento de linfa. A transição é pacífica, e todos vivem.
— Maaaannn... esta cena não me tá a bater bem! Começo a desconfiar que não tou bom. E o Deus que foi num tempo corpo humano / e, por virtude de erva poderosa / foi convertido em peixe, e deste dano deixei de conseguir respirar à superfície...
Serra e a Grandelasca entreolharam-se. A técnica encolheu os ombros mas nada disse. Era claro que o ET começava a desconfiar de que não estava no seu estado normal, o que mostrava que começava a regressar à lucidez plena. Que tinha dito o sintetizador? Que os efeitos eufóricos duravam doze horas? Mas nem uma hora se tinha passado desde a injecção... e havia já algum tempo que o hoog não se mostrava eufórico, bem longe disso...
Mas como é que o sintetizador tinha feito chegar aos humanos a informação? O sintetizador não falava em língua de gente, e Serra nem mesmo sabia se era língua de hoog a que ele usava. Ou seja, tinha sido necessária a intervenção de um filtro terceiro...
O tradutor automático.
O mesmo tradutor automático que transformava em verso decassilábico longas tiradas dos discursos que traduzia. O mesmo tradutor que lhe chamava “motosserra”. O mesmo tradutor que já tinha gerado múltiplas confusões entre o hoog e diversos personagens desta história. Enfim, o mesmo tradutor que, nas imortais palavras do antigo presidente Jorge Arbusto d’Oliveira, tão imortais que tinham encontrado um caminho para o seu epitáfio, eram uma “grande dor no rabo”, o que não era mais do que uma antiga expressão inglesa, traduzida de forma literal e desastrada.
Ou seja, nada de mais adequado para chamar ao tradutor automático.
Mas é certo que o hoog, se não estava eufórico, estava pelo menos expansivo. Como já se disse, falava pelos cotovelos — literalmente. Tinha perdido aquela dignidade silenciosa que é tão associada ao trabalho subtil dos diplomatas e que, pelos vistos, se estende até aos que não são humanos. Estava obviamente drogado. Gerava incidentes em ritmo vertiginoso, e parecia começar a dar-se conta disso.
Seria boa ideia aproveitar para lhe dizer o que se tinha passado? Seria boa ideia abrir agora o jogo?
— Joanina... — começou Serra. — Dizemos-lhe?
— Não faço ideia, doutor. Essa decisão é sua. — Respondeu a técnica, esfregando as mãos uma na outra como se tivesse frio.
Passado algum tempo, o suficiente para a tradução lhe ter chegado, o ET voltou-se e estremeceu:
— Que há, agora? — disse o tradutor automático.
Serra hesitou. Mas, que raio, as coisas já estavam a correr tão mal que piorar seria difícil!...
— Como sabe, vossa excelência teve um pequeno colapso, rapidamente solucionado com recurso aqui ao sintetizador. Acontece, no entanto, que o aparelho, após diagnóstico, recomendou a aplicação de uma dose de hoogabis, o que obviamente fizemos dado tratar-se de diagnóstico e profiláctica produzidos por um aparelho de fabrico hoog, e portanto vossa excelência encontra-se... — Serra interrompeu-se ao ver que o extraterrestre começava a esbracejar furiosamente. E pela primeira vez agradeceu a existência dos atrasos das traduções simultâneas: quando esta chegou, já estava mais ou menos preparado para o que aí vinha.
— Drogado, man? Vós haveis-me drogado, man? Vocês, ó bacanos, meteram-me hoogabis na carola, man? Andais de vosso sangue, ó gente insana? Quereis perder a linfa nos meus braços? Não estão bons da cachola? Falta-lhes um par de parafusos? Tendes demasiados pregos para o caixão, deixais cair a mão, no chão? Então? Estas obras de Baco são, por certo! Estavam bezuntos, só pode! Como lhes veio essa ideia marada, man? Hoogabis? No meio de um contacto diplomático? Maaaaan! Tou-me a passar! Estes fininhos são doidos! Doidos! Marados de todo! Feios e chalados como rabejadores alados dos céus verde-prado de Makoone. Que cena! Mas que cena macaca! Eu passo-me, man! E não me calo, man! Claro, tou marado, man! Porque é que eu falo pelos cotovelos, pensava eu há bocado... claro! Por causa da hoogabis! Já julgo por mau zelo e por crueza / desejar mal a tanta fortaleza! Ouve, Motosserra, de quem foi a ideia? Quem foi o marado? Quem? Hã? Quem?
Serra suportou estoicamente a diatribe até ao fim, mas depois, em vez de responder, fez uma pequena vénia, virou-se para o estafeta cujos olhos saltitavam, muito abertos, entre o terrestre e o extraterrestre, e cuja pele (ou pelo menos a parte dela que se via por baixo dos restos secos de muco) estava branca como o pêlo de um urso polar no meio do nevoeiro, retirou-lhe das mãos o sintetizador, virou-se para o ET com nova vénia e apresentou-lhe o aparelho.
O hoog ficou um momento na expectativa, mas acabou por arrancar o aparelho das mãos do Chefe de Protocolo e por afastar-se alguns passos com ele, virando-se para as cerimónias da Tona, ou seja, de costas para os técnicos humanos.
Serra ainda pensou em segui-lo, a fim de tentar ver o que ele estava a fazer, e chegou a esboçar um movimento nesse sentido, mas foi retido pela mão da Grandelasca no seu braço. Olhou-a. Ele abanava a cabeça, lentamente. Mas não foi isso que o convenceu a ficar quieto: foram os olhos.
Pestanejavam.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
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