segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

20.

O TRADUTOR AUTOMÁTICO, que fora ignorado pelo hoog e permanecia confortavelmente instalado nas mãos do estafeta, embalado pelos estremeções que este dava — estes nervos, estes nervos —, começou a zumbir, muito baixinho.

Serra e a Grandelasca aproximaram-se, tentando entender o que o aparelho ia dizendo, se é que dizia alguma coisa.

Até dizia, mas nada que se entendesse:

— ... tratamento para... em cima de... nada... bis... consciente do ambiente envolvente... evidentemente... recuperação... — e outros fragmentos de conversa semelhantes, uma palavra desgarrada aqui, outra ali, nada que se conseguisse juntar num significado concreto além, claro, do óbvio: o embaixador procurava informar-se por si mesmo acerca do que lhe acontecera. E não queria ouvidos metediços à escuta, porque assim que se apercebeu dos humanos reunidos em torno do tradutor automático, deslizou a grande velocidade até junto do grupo e arrebatou o aparelho das mãos do estafeta, desligando-o com uma sapatada e regressando à sua posição anterior.

Os técnicos humanos entreolhavam-se, esperando. Os outros, os mirones, encolheram os ombros e foram-se embora, juntando-se à massa de gente que assistia à tomada de posse do novo presidente, mesmo a tempo de saborearem o final da leitura das várias classificações da Tona e a proclamação oficial dos vencedores. Só um jornalista ficou por ali, passeando para cá e para lá, de mãos atrás das costas, depois de os seus pedidos de declarações terem sido rechaçados várias vezes por Serra, duas ou três vezes pela Grandelasca, e de ter sido corrido pelo Chefe de Protocolo quando tentava entrevistar o estafeta, o qual se mostrava cooperante e feliz pela atenção, atitude que lhe valeu uma severa reprimenda de Serra que só terminou quando a técnica resolveu intervir.

Durante um bocado, nada aconteceu. Só lá fora havia algum movimento, com o presidente demissionário a aprestar-se para iniciar o seu discurso de fim de mandato. Conviria talvez ao grupo estar presente, pelo menos quando o novo vice-presidente acabasse o discurso (para aplaudi-lo, naturalmente), mas a coisa iria ser longa — não havia pressa. O ET mantinha-se mais ou menos imóvel, exceptuando-se os habituais movimentos convulsivos que indicavam a fala e uma espécie de pirueta de vez em quando, que ninguém entendia.

Isto até que o hoog se virou de novo para os técnicos, se aproximou e entregou o tradutor ao chefe de protocolo. Ligado. Estremeceu, e o tradutor disse:

— OK, meu. Tou-te a ver. Tá baril. Mas já tou no chão, não?

— Perdão?... — respondeu Serra, sem compreender.

— Não, não. Tou-te a dizer. Tás na boa. A ira com que súbito alterado / o coração dos Deuses foi num ponto / não sofreu mais conselho bem cuidado / nem dilação nem outro algum desconto. Mas tudo bem. A erva é boa. A maquineta malhou-a bem. Não tens de pedir desculpa. Porém, passado o tempo e findo o voo, terminado o motivo de enjoo, man, já basta, preciso daquilo que tá na pasta.

— Pasta?! Que pasta?

— Não, man, não é gaveta, é pasta, é esta maquineta — o hoog apresentou o sintetizador. — Tás a ver? Há cá uma cena que faz perder os efeitos à hoogabis, que são baris mas não podem permanecer.

— Hum... acho que estou a entender. Joanina? Que te parece?

— Parece-me que é óbvio que ele está a dizer que precisa dum antídoto, que estará no sintetizador. Não percebi é se espera que sejamos nós a dar-lho...

Que-que-que-que, pensou Serra, chocado com aquela fraseologia esquisita, mas tá bem. O chefe de protocolo pensava o mesmo e incompreendia também a mesma coisa. O hoog desfez as dúvidas, estremecendo:

— Não, man, não sejas grunho! Eu tou só a explicar, OK?

— Iá... — deu Serra por si a dizer antes de corrigir, atrapalhado: — ou melhor, sim.

O hoog pareceu satisfeito na sua inexpressão habitual, segurou o sintetizador de uma maneira impossível a qualquer animal com mãos de cinco dedos e polegar oponível, e estremeceu ainda um pouco antes de fazer passar os seus apêndices mais finos por uma certa zona da máquina, tão depressa que os tornou indistintos. A zona em questão perdeu a cor, que era verde-azeitona, passando a branco-talo-de-couve, voltando de seguida, lentamente, à cor original, ao mesmo tempo que o tradutor traduzia:

— Isto vai demorar um gugguda.

Que diabo seria um gugguda?...

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