segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

21.

UM GUGGUDA, AFINAL, era pouco tempo: pouco mais de dez minutos.

Mas, embora curto, foi um bocadinho bastante interessante.

Para começar, o hoog instalou-se numa posição que obedeceria talvez à sua concepção de conforto: ventosas no ar, roliço corpo assente no chão e braços espalhados por todo o lado sem qualquer sugestão de ordem ou método. Alguma parte daquela anatomia falava enquanto decorria a instalação, no que talvez até fosse um traço arcaico, eventualmente mesmo instintivo. Certo era que o tradutor traduzia, articulando, de volta à sua voz de soprano, uma longa sucessão de: — Aaaah! Boooom! Aaaaah! Boooom! — e intercalando estas palavras inteligíveis com ruídos misteriosos, vagamente semelhantes a suspiros ou gemidos.

Algum tempo depois, talvez quando se achou, enfim, confortável, o embaixador agarrou no sintetizador, voltou a remexer numa zona específica da pele da máquina, que mudou de cor, desta vez para amarelo-torrado, e introduziu-a lentamente, pela extremidade mais fina, numa prega situada na base da cabeça, de cuja existência nenhum dos terrestres suspeitara até aí.

Do tradutor saía uma torrente de gritinhos que em boca humana seriam causa de grande embaraço, se por acaso fossem escutados por terceiros.

Serra, depois de engolir em seco, assumiu uma expressão que esperava que fosse circunspecta e científica, sacou do bloco de apontamentos e da caneta que trazia sempre no bolso da bata, raspou o muco seco que se lhe colava ao visor, e começou a tirar notas.

Entretanto, já fixo no orifício, prega ou lá o que aquilo era, o sintetizador começou a tremer. Percebeu-se que era linguagem quando o tradutor disse:

— Análise automática em curso. Aguardar.

E, passado pouco tempo, murmurou, em rápida sucessão, um conjunto lacónico de frases de duas palavras:

— Análise concluída. Diagnóstico concluído. Profiláctica estabelecida. Decorre tratamento. Tratamento concluído. Esperar efeitos. Três tagguda.

O hoog, entretanto, estremecia com maior vivacidade, e quando o sintetizador se calou, o tradutor passou a exprimir em linguagem humana o significado das tremuras do embaixador:

— Hum. Aaaah. Bom. Bom. Bom. Hum. Aaaah. Ooooh! Ooooh! Ooooh! — e assim sucessivamente.

Serra pigarreou, olhando de soslaio para a Grandelasca, a qual apresentava uma máscara imperturbável.

— Provavelmente devíamos dar-lhe alguma privacidade — disse ela, casualmente.

Serra fez-se desentendido:

— Para quê? O tratamento decorrerá normalmente, connosco a ver ou não. E, se ficarmos, podemos sempre... hum... aprender qualquer coisa.

A técnica não respondeu, mas manifestou o seu desagrado fazendo deslizar os olhos pelo exterior da barquinha, onde nada se passava de especial. O presidente demissionário prosseguia o seu discurso, que chegava aos ouvidos dos técnicos deturpado por ecos e reverberações, e a assistência continuava dividida entre a plateia de gente famosa e a geral de anónimos. Na zona VIP, o tempo era dividido entre valentes cabeceadelas e aclamações a destempo, quando o aclamador acordava sobressaltado, despertado por uma qualquer peripécia do seu sonho e julgando que fora do território onírico, na realidade do tempo desperto, era aquela a altura certa para aplaudir. A um canto, um grupinho turbulento de profissionais dos media trocava histórias galhofeiras, fazendo deslizar olhos brilhantes de malícia pelos ricos e famosos, mas sem prestar a mínima atenção ao acontecimento em si, enquanto as suas tarjetas de identificação enviavam reflexos em todas as direcções. Quanto à zona popular, também conhecida entre os políticos, carinhosamente, pela “zona da ralé”, conseguia ser ainda mais turbulenta que o grupinho de jornalistas, estremecendo com as corridas de crianças que enchiam o ar com os seus guinchos, enquanto as famílias alternavam reprimendas e chamamentos dirigidos aos mais novos com bocas variegadas dirigidas aos políticos. De vez em quando, em resposta a algum dito mais engraçado, sectores inteiros explodiam em gargalhadas, e o burburinho alastrava à medida que se ia passando palavra ao longo da multidão. Fora daquele sítio, em Tonas passadas, que tinham saído quase todas as alcunhas dadas aos membros do governo, desde o Dumbo Disney, de seu nome Pilo Chino (também conhecido por Macaco Orelhudo, pois era raro o político que tinha só uma alcunha), o primeiro e último Ministro dos Assuntos de Primeira Importância (cargo cuja utilidade nunca foi compreendida por ninguém, criado pelo presidente Jorge Arbusto d’Oliveira e extinto pelo primeiro decreto do presidente que lhe sucedeu, para grande irritação de Arbusto d’Oliveira), até ao Furão Caixa-d’Óculos, que já tivemos o prazer de conhecer mais atrás.

A Grandelasca ia olhando para o que se passava no exterior sem que visse realmente alguma coisa. Tudo aquilo pouco mais era, para si, do que paisagem, um fundo multicolorido para os seus pensamentos. Mas um movimento houve que lhe despertou a atenção, quando um funcionário do Palácio se dirigiu ao dirigível após ter parado junto ao púlpito durante alguns segundos, tempo suficiente para ouvir qualquer coisa que o presidente lhe segredou, interrompendo para isso o discurso, o que fez subir sobrancelhas um pouco por todo o lado. A técnica seguiu com os olhos o trajecto do funcionário até se tornar claro que se dirigia para ali.

— Doutor — chamou, virando-se para o sítio onde o ET permanecia deitado, agora já mais calmo mas segregando, de uma área junto das ventosas, uma substância espessa e esbranquiçada que cheirava intensamente. Ao lado, o Chefe de Protocolo permanecia em pé, curvado para a frente, agarrado ao bloco de notas, escrevinhando furiosamente, e o tradutor, nas mãos do estafeta, já só ronronava.

Serra levantou os olhos e encurvou os lábios num sorriso para encarar a técnica. Esta apontou para o funcionário, que já chegava junto do grupo. Serra endireitou-se.

— Sim?...

— É o doutor Serra? O... hum... — olhou para um papel amarrotado que trazia na mão — o Chefe de Protocolo Para Contactos com Espécies não-Humanas?

— Naturalmente. Não está a ver aqui um não-humano?

— Eu não sei de nada. Só me disseram (o senhor Presidente disse) para vir aqui ao dirigível à procura do doutor Serra e dar-lhe um recado, só a ele e a mais ninguém. Não sei nada de não-humanos nenhuns. Então o Serra é o senhor?

Serra fez um gesto de impaciência. Tinha na frente outro burrocrata!...

— Sou sim, criatura. Diga lá o que tem a dizer.

— Hum... bom... o Senhor Presidente pede a sua comparência imediata no estrado. Disse-me para não voltar sem si e os seus acompanhantes.

— Então vai ter de esperar. O hoog está a recuperar duma pequena maleita, e não pode deslocar-se neste momento.

O outro mudou o peso, que não era muito, de um pé para o outro.

— Desculpe lá, mas o Senhor Presidente disse “imediatamente”.

Serra inspirou profundamente e levou a mão à testa. Depois colocou-se ao lado do funcionário, pôs-lhe a mão no ombro e fê-lo aproximar-se do extraterrestre.

— Está a ver isto? — perguntou.

— Hum... sim, mas...

— Muito bem — interrompeu Serra. — Então se quer ser um bom rapaz e cumprir à risca as ordens do nosso antigo presidente, vai ter de ser você a carregá-lo e besuntar esse seu lindo uniforme com aquela pasta branca. Mãos à obra! — concluiu, dando palmadinhas nos ombros do outro.

Este olhou para o hoog, depois voltou a olhar para Serra, engoliu em seco, deu meia volta e foi-se embora sem mais uma palavra. Serra ficou a vê-lo afastar-se, sorrindo.

Depois de lidar com políticos durante tanto tempo, um tipinho destes de vez em quando era até refrescante...

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