segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

22.

O HOOG VOLTOU A ACORDAR passado pouco tempo. Pôs-se em pé devagarinho e tremendo muito (embora aquelas tremuras não fossem vocais, pelo menos ajuizando pelo silêncio do tradutor), limpando-se com uns pêlos cor de rosa que tinha na parte superior de algumas das ventosas, e fazendo movimentos que Serra podia jurar que eram olhares lançados em volta.

— Ah, já sei — acabou por dizer o tradutor. — Olá, Motosserra. Estou um pouco desorientado. Os ventos eram tais, que não puderam / mostrar mais força de ímpeto cruel. Mas passa já. Só um bocadinho.

Serra não sabia bem como havia de dirigir-se ao hoog agora, depois do procedimento de desintoxicação ter, ao que parecia, dado bons resultados. Optou pelo formalismo. Cuidados e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, pensou, num dos seus ataques de arcaísmo, não muito frequentes mas mesmo assim característicos.

— Com certeza, Senhor Embaixador. Todo o tempo de que necessitar.

Seguiu-se uma pausa, aproveitada pelo chefe de protocolo para dar palmadinhas na bata (fazendo, quase sem dar por isso, com que dela se desprendessem pequenas placas de muco seco), para olhar em volta, para relancear os olhos pelo relógio e verificar em que fase das cerimónias se estava lá fora. Aí encontrou um olhar glacial do presidente demissionário, o qual, em pleno púlpito e sem interromper o discurso, lhe lançou um imperioso mas incompreensível aceno de cabeça, que teve como consequência principal que cerca de metade da assistência (a metade que se encontrava, por acaso, acordada naquele momento) pusesse os olhos em Serra, tentando compreender o gesto do orador.

Serra virou-se para o extraterrestre:

— Quando o Senhor Embaixador estiver pronto...

— Pois — resmungou o tradutor automático.

Houve que esperar ainda mais algum tempo, gasto pelo Chefe de Protocolo a mudar o peso de uma perna para a outra e de volta à primeira, relanceando de vez em quando uma fugaz olhadela para o estrado, onde o presidente demissionário continuava a discursar mas parecia ter os olhos fixos nele, Serra, o que lhe causava uma sensação deveras incómoda. Na plateia, onde entretanto havia aumentado significativamente o número de pessoas acordadas, já se cochichava, e braços erguiam-se daqui e dali, apontando para o interior do dirigível. No estrado, a fila de candidatos também se mostrava inquieta, e Meneres, que parecia muito irritado, dava ordens com grandes gestos à nuvem de funcionários que o rodeava, olhava com frequência para o relógio que lhe pendia de uma corrente de ouro que trazia pendurada do pescoço, e tinha uma das pernas numa tremedeira que quase chegava a ser violenta.

Serra dava tudo para conseguir entender o que o presidente estava a dizer, mas o som que lhe chegava aos ouvidos era uma superfície líquida cheia de ondas que se entrechocavam e distorciam o padrão geral até torná-lo irreconhecível.

Mas já compreendera que iam ter de sair dali depressa, desse lá por onde desse.

— Senhor Embaixador, seria mesmo bom se pudesse acompanhar-me até ao exterior deste veículo a fim de participar da cerimónia que decorre lá fora.

O hoog mexeu-se um pouco, talvez espreitando o mundo lá fora, e estremeceu:

— Antes disso, Motosserra, quero fazer algumas indecisões, a que espero que me afirmes, pá.

— Deseja fazer perguntas? Com certeza, Senhor Embaixador. Mas se pudéssemos ir andando...

— Ainda não. Sossega. Primeiro: que me aconteceu?

Serra engoliu em seco. Outra vez? Mas não havia alternativa, e portanto pôs-se a contar a história, estas páginas todas que já ficaram para trás. Ainda tentou abreviar, saltando capítulos, mas o hoog detectava as falhas na sequência e voltava atrás com perguntas demasiado pertinentes, ainda que tornadas difíceis de decifrar, por vezes, por acção do tradutor automático. A Grandelasca mantinha-se silenciosa e seguia o desenrolar da história com leves alterações na disposição dos músculos faciais. Quanto ao estafeta, não tugia nem mugia.

A história foi, no entanto, acompanhada por um grupo crescente de pessoas com certificação da segurança para entrar no dirigível (ou seja, ou com um cartão oficial qualquer, ou com pilhas de dinheiro nos bolsos, ou com ambos), gente que ficara curiosa com os gestos presidenciais dirigidos àquele grupo (que prosseguiam) e que, farta de palavreado monótono e sem substância, tinha resolvido vir ver o que se passava.

Depois do Chefe de Protocolo ter desbobinado toda esta história, o ET ficou imóvel durante algum tempo. Não respondia às perguntas que lhe eram feitas, algumas directamente dirigidas a ele pelos técnicos, outras atiradas ao ar pela assistência, na esperança de que ele as agarrasse. Nem a insistência de Serra para que o acompanhasse até lá fora tinha algum efeito. Enquanto isso, no púlpito, o presidente demissionário arrastava o discurso simulando problemas de garganta e pedindo sucessivas garrafas de chá fresco, que chegavam cheias até à borda de um líquido amarelo-claro que não cheirava a chá e como que pedia duas pedras de gelo, para grande e cada vez mais óbvia irritação de Meneres.

Aquela cerimónia de tomada de posse começava a ameaçar ficar na história.

Finalmente, o ET remexeu-se e o tradutor automático descongelou o seu altifalante:

— OK, tá bem — disse. — Agora responde-me a mais indecisões. A tua história faz sentido, mas sinto-me como se daqui fossemos cortando muitos dias / entre tormentas tristes e bonanças / no largo mar fazendo novas vias / só conduzidos de árguas esperanças. Ou seja, há milípedes de coisas que não capitalizo. Por exemplo: quem é, afinal, o Irmão de Gosma?

Uma nuvem de murmúrios elevou-se em torno do ET. Pouca daquela gente tinha entendido alguma coisa do discurso do hoog, e as pessoas viravam-se para os vizinhos perguntando coisas como que é que ele disse? e recebendo, regra geral, um encolher de ombros por resposta.

Serra, claro, tinha entendido. Para alguma coisa havia de servir ter-se certos conhecimentos especializados.

— Saiba o Senhor Embaixador que o indivíduo a que chama Irmão de Gosma é o nosso presidente, que se prepara para renunciar ao cargo neste preciso momento. Se o senhor Embaixador me acompanhasse até lá fora, eu...

— Presidente é o quê? Um chefe de clã? — interrompeu o ET por entre as gargalhadas que se tinham seguido à identificação do presidente demissionário como “irmão de gosma”.

— Bem... sim... pode dizer-se que sim... um chefe de um grande clã de muitos milhões de indivíduos.

— Ah! Um ghoogplex. — Uma pausa. — E por que é que ele vai embora? Os nossos ghoogplexes permanecem até que o pântano os regurgite só para refrigério e doce amparo / desta cansada já velhice sua. O Irmão de Gosma — mais gargalhadas na assistência — parece de ovo...

— Sim, é. Nós mudamos de Presidente... hum... de ghoogplex... sempre que o Presidente perde as eleições. Se se dignar acompanhar-me, tenho a certeza que...

— Eleições?... — perguntou o ET.

— Sim, sim — respondeu Serra, cada vez mais impaciente — é uma forma de escolher os nossos líderes. Antigamente era com votos, mas...

— Não mastigo — interrompeu de novo o hoog. — Vocês só têm um ghoogplex de cada vez?!

— Claro! Como se poderia governar a nação com vários Presidentes ao mesmo tempo? Tem de haver alguém no topo da pirâmide. Agora, por favor, senhor Embaixador, se me acompanhar podemos continuar a conversar pelo caminho. Vamos até lá fora, sim? Por aqui...

O ET finalmente acedeu. Caminharam em silêncio, seguidos da técnica, do estafeta e de uma longa fila de curiosos. O hoog, silencioso, parecia reflectir sobre o que tinha aprendido, o que queria dizer que a conversa ainda não tinha chegado ao fim. E com efeito, ainda antes de chegarem às portas do dirigível, o hoog estacou e pôs-se a esbracejar por um bom bocado. Fora do dirigível ouviram-se ganidos de cães por entre as palavras do presidente cessante, que agora chegavam claras aos ouvidos daquela pequena comitiva.

— E eis que se aproxima — dizia aquele que fora presidente da nação nos últimos anos — o representante diplomático da espécie alienígena mais poderosa deste braço da Galáxia, que por único e exclusivo mérito do meu executivo achou por bem visitar-nos a fim de estabelecer contactos de benefício mútuo, e não quis deixar de marcar presença neste momento histórico em que, no meu respeito profundo pelas tradições democráticas da nação, passo o testemunho ao meu sucessor. É com grande honra, é com enorme alegria, é com...

Serra não ouviu o resto porque o tradutor automático se pôs a falar. E o que o hoog disse foi uma coisa totalmente diferente:

— A notícia de só terem um ghoogplex de cada vez é perturbadora. Afinal de contas, as vossas naus já velejam pelo espaço, pelo mar alto Sículo navegam; / Vão-se às praias de Rodes arenosas; / E dali às ribeiras altas chegam. Não renasce bem. Preciso de mais informações. Como escolhem um ghoogplex em detrimento de outro? Quem pode tornar-se ghoogplex? É genético ou fenotípico? Inato ou adquirido? Superior ou inferior? Há zanga de correntes de ar? Linfa solta? Mucos verdes? Que se passa ali fora? Quem são todos aqueles membros? A equipa? O ninho? Porque fazem tanto barulho? E que se passou há bocado, quando estávamos no mecanismo flutuante? Gostava que isso me fosse pintado, de preferência a azul. Motosserra, a confiança é a mãe dos intercâmbios íntimos, sabias?

Serra olhou em volta, embaraçado com esta última frase, e compreendeu que, se ia explicar aquilo tudo ao ET, nunca mais sairiam do dirigível e o presidente demissionário, que já estava com um sorriso rasgado preparando a entrada do hoog no palco, e portanto na história do planeta, e concomitantemente a sua própria entrada nessa história em lugar de destaque por intermédio do pequeno ET, iria ficar à espera, perdendo lentamente o sorriso, numa posição cada vez mais desconfortável, à medida que da assistência se começasse a elevar um coro de risadas, ditos brejeiros e insultos, o que iria acontecer sem a mais pequena sombra de dúvida, e seria transmitido em directo para milhões e milhões de receptores espalhados por todo o planeta. Não podia ser. O ET tinha de sair.

— Senhor embaixador, terei todo o gosto em responder-lhe a todas as dúvidas, mas é de fundamental importância que saiamos imediatamente deste aparelho.

— Porquê? — perguntou o hoog quando a tradução lhe chegou.

Serra pensou rapidamente:

— Porque... hum... espera-se a qualquer momento que seja dada ordem de largada, após o que será impossível descer.

A Grandelasca olhou para Serra com os grandes olhos a brilhar reprovadoramente, e recebeu uma cotovelada assim que abriu a boca, voltando a fechá-la de imediato, e levando a mão à zona atingida (um braço apenas, o lugar habitual para receber-se destas pancadas, nada de grave). Serra estava tão concentrado no problema que tinha entre mãos que nem aproveitou a oportunidade para embrulhar mais uma insinuação amorosa num pedido de desculpas. Quanto ao problema, que era baixo e com ventosas, estremeceu e pôs-se a caminho enquanto o tradutor dizia:

— OK.

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