segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

23.

SAÍRAM DO DIRIGÍVEL e subiram ao palco no meio de um coro de aplausos e aclamações (e da inevitável galhofa, assobios, e bocas da geral, naturalmente). O hoog, a princípio, estranhou o ambiente, e ainda houve um pequeno compasso de espera enquanto perguntava que diabo de ruído era agora aquele, que estavam a fazer todas aquelas “criaturas”, para que batiam em si mesmas daquela maneira e se eram ou não doidas, mas Serra conseguiu explicar a contento mais aquela estranha característica humana de fazer algazarra ritual em determinadas alturas da vida, e o ET até se deu ao luxo de um par de acenos para a multidão (depois de consultar o Chefe de Protocolo a respeito da resposta apropriada naquela situação, claro).

Subiram, portanto, ao palco e colocaram-se ao lado do púlpito, onde o presidente demissionário, depois de se ter juntado à fracção da assistência que aplaudia, retomava o discurso:

— Como dizia, estes alienígenas, que se tratam a si mesmos por gugue, construíram a mais poderosa civilização deste braço da galáxia, e o facto de eu e a minha administração termos conseguido trazê-los até nós abre perspectivas incalculáveis para o futuro desenvolvimento da nação. Prevêem-se melhoramentos inimagináveis não só nas biotecnologias, nas tecnologias ligadas às viagens espaciais, ou nas ciências e técnicas de informação, como poderemos vir ainda a obter conhecimentos inapreciáveis em muitas outras áreas. E fui eu, e foi o meu governo, e foi a minha administração que alcançou tal feito mesmo nas vésperas da minha candidatura ser derrotada na Tona, que desta forma mostra uma vez mais que é um método pueril para a escolha dos dirigentes da nação, e cujo resultado tenho a máxima honra em acatar. Os gugue vieram para ficar e iniciar uma relação de mútuo...

— Porque me chama o Irmão de Gosma “grogue”? — perguntou o hoog a Serra enquanto o discursante prosseguia a sua já muito longa intervenção.

— Perdão, excelência? Grogue? Vossa Excelência está enganado. Ele chamou à sua espécie o nome correcto: hoog — mentiu Serra. — Deve ter sido mais uma falha do tradutor, infelizmente...

O hoog ficou mais algum tempo imóvel, a escutar a tradução do discurso do presidente demissionário, e depois disse:

— Fascinante! Tanto que estas palavras acabou! E, no entanto, nada delas saiu. Nunca tinha reerguido que um ser comunicasse tanto sem comunicar coisa alguma!...

Serra teve um sobressalto. Olhou para o presidente, mas este estava entusiasmado com o seu próprio palavreado e não parecia ter ouvido o comentário inconveniente do hoog. Em todo o caso, era melhor tentar cortar o mal pela raiz. Como? Bem... estava por ali um bode expiatório perfeito:

— Provavelmente é do tradutor, Excelência — disse o Chefe de Protocolo. A Grandelasca fez uma careta e disse:

— Mas...

— É certamente do tradutor — repetiu Serra, acotovelando gentil e preventivamente a técnica. Maldita mulher!, pensou, Que lhe havia de dar agora! Honestidade, pode lá ser?...

O hoog, desta vez, ripostou:

— Não me parece. O tradutor normalmente transforma o que me dizem em cretinadas. Mas estando sossegado já o tumulto / dos Deuses e de seus recebimentos, / começa a descobrir do peito oculto / a causa, o Tioneu de seus tormentos. E percebe-se, como é sempre igual, qualquer que seja a criatura que comunica, que o problema é do tradutor. Até porque, de há algum tempo para cá, arranjou a mania de recitar versos de um épico antiquíssimo nosso, o Hoogometronomicon. Agora é diferente. São letras e letras e mais letras e ainda mais letras que o tradutor diz sem dizer nenhuma. Deixou também de recitar o Hoogometronomicon, talvez por não encontrar equivalente adequado, se calhar porque não lhe apetece (estas coisas às vezes têm vontade própria, sabias Motoserra?) — uma pausa, durante a qual o hoog pareceu escutar. — Agora parece estar a traduzir particularmente bem, mas continuo sem receber informação nenhuma. Fascinante. Como te chega a tradução, Motosserra?

Serra olhou para a Grandelasca, que lhe devolveu um olhar duro. Olhou depois para o presidente, que se mantinha no púlpito, entusiasmado com a sua própria oratória, gesticulando efusivamente, gostando de se ouvir e sem parecer ter compreendido, ou sequer ouvido, o que quer que fosse da conversa que se desenrolava não muito longe de si. Serra devolveu os olhos à Grandelasca, que franzia a testa com um ar perigoso, parecendo disposta a armar escarcéu, e resignou-se:

— Surpreendentemente bem, Excelência.

O hoog estremeceu rapidamente. Quem estava a olhar na direcção certa viu um cão desatar a fugir, rabo entre as pernas, no fundo do jardim. Com todo o barulho que havia no estrado não se ouvia nada, mas o cão provavelmente gania.

— Porreiro! — disse o tradutor, conseguindo pôr na palavra o entusiasmo que ela pedia. — Vamos aproveitar. Vais-me finalmente explicar por que têm vocês só um ghoogplex de cada vez?

Serra suspirou. Não havia escapatória. Ou haveria? E se ele falasse como o tradutor?

— Certo. Por mares nunca dantes navegados. As armas e os barões assinalados... hum... (como começa esta treta?) e a praia lusitana e etecetera. Somos só um chefe porque dois chefes são chefes a mais e não chefeiam (chefeiam? Existirá a palavra?) coisa nenhuma. Hum... Prontos.

Depois da habitual pausa para a tradução, o hoog estremeceu:

— Ena! Estás finalmente a fazer sentido! Nunca disseste nada que chegasse cá tão bem traduzido!

Serra engoliu em seco.

Muito engolira ele em seco nas últimas horas!

— Portanto — prosseguiu o ET — vocês não sabem colaborar. É isso que me gesticulas?

Bem, sim... mas não era bem isso que queria “gesticular”, pensou Serra coçando a cabeça. Era preciso desfazer o mal-entendido. Ou melhor, o que tinha sido entendido bem demais.

— Não propriamente. As naus que se vão já não voltam e é preciso que haja um responsável, porque senão as... hum... as naus que ficam não partem mais.

Rebuscado. Mas talvez suficientemente Lusíada para que o tradutor pegasse bem no significado. Serra olhou para a Grandelasca enquanto o tradutor vertia aquilo para hoog. A técnica sorriu-lhe, com uma expressão enigmática que talvez significasse encorajamento, talvez significasse troça. Pelo sim, pelo não, Serra sorriu-lhe de volta, enquanto o ET estremecia só um pouco. O tradutor traduziu:

— Ah. Agasalhados foram juntamente / o Gama e Portugueses no aposento, mas apesar de o agasalho ser conjunto é ao Gama que mais calor vai dar, e se vier o frio é do Gama que sai para o resto da malta. É isso?

Serra sacudiu a cabeça como quem precisa de tal gesto para pôr o cérebro a funcionar. Que diabo tinha o extraterrestre dito agora?! Olhou para a Grandelasca, que continuava a sorrir. Perguntou-lhe se tinha entendido alguma coisa, ela vez que sim com a cabeça e disse apenas:

— O embaixador compreendeu a essência da nossa sociedade.

— Ah foi? — perguntou Serra, ainda sem perceber. Depois fez-se luz. Claro! Calor é coisa boa, frio, coisa má, quem está no topo da pirâmide recebe mais coisa boa, e distribui generosamente coisa má pelos demais.

Mesmo que num maniqueísmo de infantário, no fundo era isso mesmo.

Mas a ideia de que fosse essa a impressão com que o embaixador tinha ficado da espécie humana não era nada agradável. Na realidade, talvez chegasse a ser preocupante. Serra tinha de pensar sobre o assunto... mas não teve hipótese porque o embaixador rapidamente lhe interrompeu as reflexões. Tinha-lhe sido traduzida a conversa com a técnica.

— Porreiro — disse. — Então agora que este Adamastor está ultrapassado, uma figura de disforme e grandíssima estatura; / o rosto carregado, a barba esquálida / os olhos encovados e a postura / medonha e má e a cor terrena e pálida...

Que exagero!, pensou Serra.

— ... então agora que já o musgo cresce no fundo do túnel, passemos à incongruência seguinte: como escolhem um ghoogplex? E por que esse e não outro?

E Serra resignou-se a contar-lhe da Tona, sua origem, sua história, suas peripécias, esperando sempre, a cada sessão de aplausos, que o presidente demissionário terminasse finalmente o discurso, interrompendo assim a explicação. Mas não só o presidente continuava obstinadamente a falar, como ainda por cima as sessões de aplausos faziam-se espaçadas à medida que na assistência o número dos que dormiam ia suplantando cada vez mais o daqueles que se mantinham acordados, sabe-se lá a que custo, sabe-se lá com que gasto de energias, sabe-se lá com que apelos às reservas mais inacessíveis de paciência. O presidente parecia querer ficar demissionário para sempre, e agora só se interrompia para pedir uma nova garrafa de água, um comprimido de urinofax (uns comprimidinhos mágicos que tinham efeito na bexiga, desidratando a urina por um período de catorze a dezassete horas) ou de excretobol (não perguntem), um lenço bioabsorvente para lhe retirar da cara suores e oleosidades e mantê-la perfeitamente fotogénica, telegénica, hologénica, cibergénica e com mais uma quantidade de genias no reportório.

Serra teve, portanto, tempo mais que suficiente para desfiar a história completa da Tona, responder às perguntas do ET, pedir ajuda ocasional à Grandelasca e obtê-la, pagando os favores com sorrisos concupiscentes cujo efeito principal era fazer com que suspiros de enfado levantassem voo dos lábios da técnica.

Mas apesar de tudo, apesar do tempo dispendido, apesar, ou em parte por causa, de todos os rodeios e atalhos que as explicações tiveram de tomar para atravessar a selva espessa das traduções “criativas” do tradutor automático, quando a longa dissertação do Chefe de Protocolo terminou, o ET disse apenas:

Queimou o sagrado templo de Diana / do sutil Tesifónio fabricado. Parece-me que não percebi nada.

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