segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

24.

— ... NA ECONOMIA — prosseguia o discurso do presidente demissionário — conseguimos reduzir o défice do estado dos valores absurdos que nos foram legados pelos nossos antecessores para valores mais aceitáveis, mais condizentes com a nação poderosa que pretendemos ser. Investimos na exploração das últimas reservas de hidrocarbonetos encontradas ao largo das costas antárcticas, numa parceria com a Bepeconchex (aqui representada pelo seu principal accionista), altamente lucrativa para ambas as partes. Mas não pensem que o destino deste petróleo é apenas artigos de luxo, jóias e vestuário para os mais ricos. Não! Também distribuímos parte desse peculiar minério pelo povo a fim de...

E este gajo que não se cala!, exclamou Serra silenciosamente, apenas de bando de neurónios para bando de neurónios, tudo bem encerrado e em segurança dentro das paredes arredondadas do seu crânio, que este tipo de irreverências, quando expressas em voz alta, tinham a peculiar tendência de provocar consequências desagradáveis ao irreverente.

Em voz alta, limitou-se a dizer ao ET, mantendo a amabilidade possível num homem cuja paciência estava sujeita a pressões completamente extraordinárias havia bem mais de duas horas:

— O que vossa excelência quiser perguntar, estou à disposição. Em todo o caso, parece-me ter sido bastante claro. Não sei se serei capaz de explicar melhor.

Já com desejos o Idolatra ardia / de ver isto que o Mouro lhe contava — respondeu o hoog depois da pausa do costume. — Tenta-se de qualquer maneira. Sem lançar muco não se atinge o topo dos caniços. Portanto, vamos ver se suguei: vocês apanham os vossos ghoogplexes através dos resultados de uma competição, certo?

— Correcto.

— Bom. Nessa competição, entre as armas e os barões assinalados, há os que podem chegar em primeiro lugar e os que não podem, não é?

— Exacto.

— Mas então para que competem os que não podem ser primeiros?

Serra começou a dizer “porque”, mas não tinha nada para dizer a seguir a esse arranque. A pergunta era boa. Se não tens hipótese de ganhar, para que competes? Por gosto? Vontade de fazer parte? Ganhar experiência? Masoquismo? Vontade de dar nas vistas, fosse lá como fosse? Falhas no sentido de autocrítica? Mania da grandeza?

Claro, havia que separar os políticos, os chefes das equipas, dos atletas propriamente ditos. Estes corriam porque eram pagos para correr, e aparentemente muito bem pagos. Mas aqueles...

Serra não percebia muito da natureza humana, se é que tal coisa existia. Nunca fora particularmente sociável, e mesmo quando era obrigado a estar acompanhado pelos seus semelhantes não costumava perder muito tempo tentando entendê-los. Por isso, a verdade era que não sabia a resposta à pergunta do hoog. E chegava até a duvidar de que alguém a soubesse... até os próprios candidatos... Oh, claro que havia todo o tipo de especulações, eram alardeados todos os motivos e mais alguns. Pelos próprios candidatos. Aquando das apresentações das suas candidaturas, todos eles faziam questão de declarar os motivos mais puros, as ideias mais altruístas, a bondade mais sacrossanta. Os adversários, pelo contrário, descreviam cada uma das candidaturas alheias com as cores mais negras. Enchiam os concorrentes de defeitos, desmascaravam os negócios menos claros em que estariam envolvidos, apresentavam mil motivos para investigações criminais, enfim, tentavam marcar uma diferença de fundo com a sua própria candidatura. Curiosamente, nas investigações que às vezes se levavam a cabo (era raro, mas por vezes acontecia), confirmavam-se quase sempre as acusações, e era raríssimo confirmarem-se os méritos.

A verdade era que tudo aquilo era desnecessário: afinal já não era preciso convencer ninguém, bastava vencer a Tona. Era mais uma das tradições que vinham ainda dos últimos dias do tempo em que ainda se votava e portanto se procuravam todos os meios para pescar votantes, sem que coisas como ética e verdade tivessem a mínima importância. E também as acusações e contra-acusações faziam pouco para responder à pergunta do hoog.

De resto, que era a ética? Que era a verdade? Palavras bonitas atrás das quais se escondiam interesses e conveniências. Eis uma definição que não constava do dicionário, mas que todos os políticos conheciam na perfeição.

Por tudo isto, Serra não sabia a resposta à pergunta do ET. Mas não podia simplesmente chegar-se-lhe confidentemente ao ouvido e dizer “não sei”. Ele não tinha ouvidos capazes de compreender o murmúrio. E não ficava bem assumir assim tal ignorância: afinal de contas, era a imagem de uma espécie inteira que estava em jogo.

— Depende de competidor para competidor, excelência — acabou por dizer. — Cada... hum... cada nau tem o seu vento próprio.

Glória de mandar? Vã cobiça / desta vaidade a quem chamamos fama? — interrogou o ET. — Mas isso não é só para quem ganha? E os outros?

Serra lembrou-se do Faneco. Tinha sido um desses perdedores durante muitas Tonas, e agora, finalmente, estava sentado na cadeira do vice-presidente. Ou pelo menos estaria, assim que o actual presidente se calasse. Serra olhou para a fila de candidatos. Ali cochichava-se em voz cada vez menos cochicheira, e os olhares que eram lançados ao orador assassiná-lo-iam se ele lhes ligasse alguma importância.

— Os outros podem ganhar um dia, Excelência. Depois de um vento outro vento vem.

O hoog ficou imóvel por um bocado. Depois perguntou:

— Portanto, todos têm a fome de ser mais que os outros? Todos os túneis convergem para a cova mais baixa? E para isso, qualquer excreção serve? Mesmo roubar? Por que, saindo nós pera tomá-lo, / Nos pudessem mandar ao reino escuro, / Por nos roubarem mais a seu seguro?

Bem, sim...

Mas não era conveniente dizê-lo assim ao ET...

— Bem, não... É um pouco mais complicado do que isso, excelência... — Serra calou-se. Não sabia o que dizer. Coçou a calva, suspirou, olhou em volta. Deu com os olhos na Grandelasca. Talvez lhe tenha pedido ajuda sem abrir a boca, porque a técnica, sem deixar de fitá-lo, disse:

— Senhor Embaixador, é mais complicado do que isso. Bem vê: nem todos queremos ser políticos.

O hoog escutou com atenção a tradução. Depois remexeu no sintetizador, que desatou a excretar uma espessa camada de uma substância que parecia brilhar com luz negra. De seguida olhou em volta e sacolejou:

— Mas deixam-se conduzir pelos que querem. E que sai desses nenúfares? Recebem alguma coisa? Sai algo desse ovo? Não no dá a pátria, não, que está metida / no gosto da cobiça e da rudeza / duma austera, apagada e vil tristeza... tristeza a minha, gentil, que chegaste quando percebi a natureza do Irmão de Gosma, aquele gharrut que ali está comunicando sem transmitir informação alguma aos que observam, e que pretende permanecer como ghoogplex para lá do seu dia da lua branca.

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