SERRA IA ABRIR A BOCA para protestar contra aquelas ideias do hoog, estapafúrdias de tão acertadas, mas teve de a fechar, porque Meneres resolveu escolher aquele mesmo instante para se levantar do seu lugar e dirigir-se ao púlpito, quebrando todas as regras protocolares. Chegou-se ao presidente demissionário, agarrou-o por um cotovelo (mantendo no rosto um sorriso simpático, para consumo da assistência) e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O já quase vice-presidente, interrompido no meio de mais uma frase de grande efeito (embora, segundo o extraterrestre, vazia de informação), franziu o sobrolho com irritação, ainda esboçou uma tentativa de sacudir a mão do outro de cima de si mas, vendo que não conseguiria fazê-lo sem armar escândalo, acabou por aceder à insistência do seu futuro substituto, dizendo para o microfone:
— Caros amigos e compatriotas, um acontecimento imprevisto exige que deixe por alguns momentos a vossa companhia a fim de trocar impressões com o candidato Meneres. É só um momento. Volto já.
Depois daquilo, na assistência passou a reinar a cotovelada, sendo os dorminhocos as suas vítimas privilegiadas. Acordava-se bruscamente, esfregando as zonas atingidas pelos cotovelos dos vizinhos, soltando hãs, bravos ou ais, ou estrebuchando em rápidos aplausos que morriam, estrangulados, assim que a sua falta de propriedade era compreendida. Lá mais para trás, os poucos representantes do povo anónimo que ainda teimavam em não se ir embora conversavam em voz alta, fazendo uma barulheira totalmente desproporcionada, um bruá contínuo interrompido de vez em quando por gargalhadas.
No palco, os presidentes, o actual e o futuro, cochichavam de forma cada vez mais acalorada, distribuindo olhares por todo o lado e gesticulando com crescente amplitude. Tudo indicava que iriam começar a ouvir-se as palavras muito em breve, pelo menos na zona do palco onde estava o grupo do ET. E, de facto, pouco depois ouviu-se o Meneres:
— Eu não deixarei! Isto já foi longe de mais!
— Não me diga que está assim com tanta pressa para se ver na minha cadeira, Meneres, que nem sequer pode esperar uns momentos...
— Uns momentos?! Você está aí a falar há muito mais de uma hora!
— Uma hora? Está louco! Falo há alguns minutos, apenas, só o tempo indispensável para dizer o que tenho a dizer ao...
— Mas você ainda não disse nada! Nada! Tem estado todo o tempo a despejar uma torrente de palavras sem pés nem cabeça...
— Isso é o que você diz. Eu...
— Não, não é o que eu digo: é o que todos dizemos — Meneres já gritava. — Olhe para os outros! Vá, olhe!
O presidente olhou. E o que viu foi uma fila de caras viradas para si, com os lábios apertados e abanando para cima e para baixo. Por baixo dessas caras, em frente aos casacos de napa, nylon e terylene, algumas mãos faziam gestos de impaciência e de impotência, enquanto que as outras se cruzavam em reprovação, levando por vezes os braços com elas. Mais para baixo ainda, pés calçados com luxuosos (ou nem tanto) sapatos de ténis estremeciam em tiques nervosos, fazendo farfalhar as respectivas pernas de encontro às calças de tecido impermeável.
— Isto é inadmissível! — exclamou o presidente. — Inadmissível! Estão a tentar cortar-me a palavra! Tentam apressar-me a retirada! É quase como se fosse um golpe de estado! Um golpe de Estado, ouviu, Meneres?...
— Não seja idiota. Eu ganhei a Tona. Você só tem de descer do pedestal. Graciosamente, se for capaz.
— Mas ainda não acabei o que tinha a diz...
— Então acabe. Dou-lhe... isto é, damos-lhe mais meio minuto. — uma pausa — E eu fico aqui a controlá-lo.
O presidente demissionário olhou em volta. E, mais uma vez, não encontrou qualquer apoio.
Estavam todos contra ele. Todos contra ele. Toda a gente lambia agora as botas do novo menino bonito da nação, este Meneres, este grande palerma que queria ocupar o seu lugar à viva força, a todo o custo, mesmo que para isso fosse necessário cortar-lhe a palavra a meio do discurso de resignação.
Aquilo não ficaria assim. Mas de momento não parecia haver nada a fazer...
Voltou para junto do púlpito, de ombros descaídos, ainda olhando em volta, com um olhar mortiço. Reparou no ET. E o olhar iluminou-se enquanto à boca regressava um sorriso.
— Minhas senhoras, meus senhores, distintos convidados, membros da imprensa... — recomeçou — Chegou ao meu conhecimento por intermédio do meu distinto substituto, o dr. Meneres aqui presente, que... — calou-se enquanto uma longa ovação se elevava da assistência e, ao seu lado, o Meneres acenava e lançava beijos, de novo o centro das atenções, com o seu melhor sorriso profissional nos lábios. Cambada de idiotas, pensou o resignatário, antes de continuar:
— Chegou ao meu conhecimento que imperativos de agenda exigem que abrevie o discurso que tinha planeado e... — outra longa ovação. Irritado, não teve outro remédio senão acenar e sorrir em vários tons de amarelo. — ... e ceder de imediato a palavra ao orador seguinte. Despeço-me, portanto, de vós, agradecendo a colaboração que me prestaram ao longo do meu mandato, sem a qual me teria sido impossível atingir todos os objectivos que ficarão a marcá-lo, e os sucessos que ficarão associados ao meu nome nos futuros livros de história.
— Quinze segundos — murmurou Meneres entre dentes.
— É, assim, com o coração agradecido que vos digo: Isto é pueril, vocês são todos pueris, a puerilidade abate-se sobre o mundo, que também é pueril!
A frase pueril, finalmente!
A assistência rebentou uma vez mais em aplausos, agora já bem acordada. Lá para trás ainda se atiravam dichotes, mas as vozes dos poucos anónimos que restavam, embora potentes, já não tinham força para se sobrepor ao ruído de centenas de mãos a bater freneticamente umas contra as outras.
O presidente demissionário, entretanto, erguia os braços, palmas das mãos viradas para baixo, pedindo silêncio.
— Declaro... um momento... um momento, por favor... declaro assim findo... obrigado... um momento... obrigado... declaro assim findo o meu mandato. — mais aclamações. Longas. — Obrigado... um momento... por favor, é só um momento... obrigado. — uma pausa, enquanto o já ex-presidente esperava que a assistência sossegasse. — Declaro assim findo o meu mandato — repetiu — mas, conforme combinei anteriormente com o meu sucessor, não sairei do centro da cena política sem antes dar a palavra ao embaixador dos hoog, aqui presente, a fim de que possamos todos ouvir de viva voz quais são as prioridades da sua espécie no contacto com a nossa nação, contacto que muito prezamos e do qual temos a expectativa de inapreciáveis benefícios mútuos. Senhoras e senhores, caros colegas candidatos, membros da imprensa, tenho o prazer de vos apresentar sua excelência Agtar do... aaa... só um momento... — afastou-se do microfone, fazendo um gesto urgente na direcção de Serra, solicitando ajuda com o título formal do hoog. — Exacto... sua excelência Agtar do Ninho de Madeira Verde e Mastigada, embaixador plenipotenciário dos hoog junto da espécie humana. Uma salva de palmas para o embaixador, e até sempre. Obrigado!
Afastou-se do púlpito, sorriso bailando nos lábios, aplaudindo vigorosamente o pequeno extraterrestre que não percebia nada do que se estava a passar. Teve de ser Serra quem, no meio de um autêntico vendaval de palmas (mas muito poucas aclamações verbais, o que não deixava de ser curioso), se esforçou por explicar ao extraterrestre que se esperava que ele discursasse, dizendo algumas palavras acerca dos contactos entre os hoog e os humanos, seu passado, presente e futuro, uma intervenção que teria de ser necessariamente breve devido não só aos problemas no tradutor automático, mas também porque o presidente eleito (isto é, o novo ghoogplex) estava à espera da oportunidade de ser empossado no cargo e fazer o respectivo discurso. O embaixador enchia Serra de porquês, parecendo tão confuso como relutante, mas por fim lá se deixou convencer e dirigiu-se na direcção geral do púlpito. Houve um compasso de espera enquanto técnicos apressados resolviam um pequeno problema logístico: o ET era demasiado baixo para o púlpito, e foi preciso desmontar o microfone e voltar a montá-lo de uma forma diferente, que conseguisse captar os sons emitidos pelo tradutor automático (que, como era óbvio, sendo um aparelho hoog era desprovido de fichas que permitissem ligá-lo directamente à aparelhagem terrestre). Mas por fim tudo ficou a postos, e o embaixador começou a sacudir-se, o que causou uma onda de murmúrios por toda a assistência. Lá ao longe, cães desataram a fugir e ainda se ouviram os seus ganidos antes do tradutor automático começar a debitar o discurso de sua excelência, Agtar do Ninho de Madeira Verde e Mastigada:
— As almas e os pavões assimilados / que, da Ocidental tralha Lusitana, / por mares nunca dantes ‘travessados / passaram ainda além da folha anciana / em perigos e povos remoçados / mais do que prometia a fome humana / e entre gente remota encontraram / novo reino, que tanto escarneceram. De facto assim é. Vim até vós para tentar compreender, na esperança de que as criaturas que recolhíamos nos nossos tubos encolerizados não fossem verdadeiras, e que afinal o pântano luminoso permanecesse como tal. Mas oh, descobri tanto de castanho! Afinal, aqui se dão, segundo o que entendi / astutas traições, enganos vários, / perfídias, como o ramo de que caí.
Serra sentiu um baque no coração.
Aquilo não podia estar a acontecer, não podia! Aquilo que ali estava a falar era um embaixador, com mil diabos! Não podia falar assim! Não podia encher a assistência de insultos velados!...
É que mesmo que os políticos fossem todos particularmente obtusos, e mesmo que ele, Serra, compreendesse melhor o ET do que qualquer outra pessoa, devido à prática e à preparação técnica, aquelas palavras eram demasiado evidentes, mesmo obscurecidas pelo linguajar arcaico e decassilábico que o tradutor adoptara. Qualquer um as compreenderia se pensasse um bocadinho nelas. Qualquer um.
E estavam milhões a ver aquilo. E, pior, estavam também a ouvir aquilo...
O Chefe de Protocolo, que começava a recear muito seriamente pelo seu futuro no cargo, e até pelo futuro do próprio cargo, olhou em volta. No palco, tudo parecia normal: a fila de candidatos resplandecia em sorrisos de satisfação, e um ou outro tinha até voltado a pegar no sono, interrompido por breves instantes pela discussão entre os dois presidentes, voltando a deixar cair o queixo sobre o peito. O ex-presidente olhava o extraterrestre com ar embevecido. Meneres, esse, mantinha-se sério, mas também parecia estar mais preocupado com a demora do que com as palavras do ET, pois em lugar de as seguir com atenção, consultava convulsivamente o relógio e batia com o pé no chão numa demonstração evidente de impaciência. Quanto à assistência, também não parecia grandemente preocupada com o que se dizia através da instalação sonora, e em vez disso olhava e apontava para o céu.
Que se passaria no céu?
segunda-feira, 12 de janeiro de 2009
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