segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

26.

O CÉU ESTAVA PRATICAMENTE LIMPO, condições meteorológicas ideais para as solenidades da Tona. Só uma meia dúzia de nuvens esfarrapadas era arrebanhada pelo vento junto ao horizonte. O sol brilhava com a força do meio do dia, começando a descer em direcção a ocidente. A Lua, em quarto crescente, já se via mas ainda estava baixa, a oriente, espreitando por entre os prédios da cidade. Descontando estes objectos astronómicos e meteorológicos, o céu continha apenas aves de várias espécies, que tratavam das suas vidas de todos os dias, preocupadas apenas em encontrar comida, defender territórios e evitar transformar-se em bife de bicho maior, repletas de indiferença por coisas irrelevantes, como presidentes, ETs, Tonas, tradições.

Enfim, um bonito e vulgaríssimo céu de primavera.

Ou sê-lo-ia, não fosse uma bola de fogo, que dava a impressão de ter saído pouco tempo antes de dentro do Sol e se aproximava a olhos vistos da cidade.

A multidão agitou-se, ouviram-se algumas vozes assustadas, um ou outro guincho. Na zona destinada ao povo anónimo houve um movimento centrípeto, com as pessoas, antes dispersas, a convergir em direcção a um pequeno número de grupos compactos. Na zona VIP, pelo contrário, deu-se um movimento de fuga. Senhoras e senhores assustados estragavam vestidos e fatos caros em empurrões, puxões e cotoveladas, numa tentativa desesperada de furar através da multidão. Quem conseguia atingir o palácio, no entanto, regra geral parava e ficava a olhar para o céu, como se os parapeitos do edifício fossem por si só suficientes para protegê-los do que quer que aí viesse.

No palco, coberto com uma lona grossa (mais um exemplo de ostentação) os candidatos não percebiam o que se passava e procuravam informar-se junto dos funcionários do palácio, sem coragem para quebrar o protocolo e simplesmente levantar-se e ir ver. Presidente demissionário e presidente eleito olhavam-se, franzindo os sobrolhos, desconfiados um do outro, perguntando a si próprios numa simultaneidade simétrica que seria que aquele filho da mãe teria aprontado agora. Serra e a Grandelasca também se entreolhavam, também relutantes em desertar dos seus postos ao lado do ET e ir tentar compreender qual era o motivo de todo aquele reboliço. Do estafeta não havia qualquer sinal: tinha sido dos primeiros a escapulir-se.

Por seu lado, o hoog permanecia imperturbável, remexendo-se com vigor e soltando ultrassons, sem dar quaisquer mostras de ter compreendido que ninguém o escutava. Pelo menos ninguém que estivesse presente, porque a maior parte dos media mantinha a sua cobertura (morrendo de medo, mas firmes, na boa tradição jornalística) e a mensagem do embaixador plenipotenciário era ouvida um pouco por todo o mundo:

... se tenho novos medos perigosos / doutra Cila e Caríbdis já passados / outras Sirtes e baixos arenosos / outros Acroceráunios infamados / no fim de tantos casos trabalhosos / porque somos de ti desamparados / se este nosso trabalho não te ofende / mas antes teu serviço só pretende? E foi assim que dos túneis saímos e ficámos a olhar para o pântano das estrelas e para as suas criaturas. E o que vimos foram vocês, criaturas de outros charcos. Daí, vim eu. Saí para buscar do mundo outras partes, e encontrei-as aqui. Sabia que outras partes significam outras tartes, e que as artes teriam de ser também molhadas. Mas não multiplicava que fossem grelhadas. Sim, o ovo chocou mal. A gema tornou-se clara cedo demais, e do grelo saiu um pêlo mais grosso que um cabelo...

Nesta altura, as palavras saídas do sistema sonoro do palácio deixaram de ouvir-se, substituídas por um trovão contínuo e de intensidade crescente. Os candidatos, finalmente, resolveram ignorar protocolos e conveniências e debandaram do palco em passo de corrida, como se quisessem mostrar aos seus atletas que também sabiam dar à perna com velocidade e categoria. Os dois presidentes entreolharam-se uma vez mais, ainda desconfiados, olharam depois em volta, e resolveram acompanhar os restantes políticos numa saída mais ou menos airosa: nenhum dos dois quis dar parte de fraco, e portanto ambos se dirigiram para o palácio em passo apressado mas sem correr.

E sem deixar que os penteados se estragassem. Tudo, tudo, tudo menos isso!

Serra aproximou-se do ET e gritou, por sobre o ruído envolvente:

— Vamos, embaixador! É perigoso ficarmos aqui!

O hoog, que se tinha calado ao pensar que deixara de ter quem o ouvisse, estremeceu:

— Aquático? Ná!...

— Não, não é aquático. Eu disse perigoso... perigoso... perigo, problemas, ferimentos, morte...

— Calma, Motosserra, calma. Não no pode estorvar, que destinado / está doutro poder que tudo domina.

Arre!, pensou Serra. E gritou, tentando fazer-se ouvir, com os cabelos a voar em todas as direcções, soprados por um vento quente que se levantara de repente:

— Não é tempo de teologias, Agtar. Vamos embora! Já!

— Não entendi. Não é tempo de quê?

— Teologias. Teorias religiosas. Mas vamos embora!

— Hã?!

Serra desistiu. Olhou para a Grandelasca que, um pouco afastada, olhava para cima e gesticulava na sua direcção, abrindo e fechando a boca como se estivesse a dizer alguma coisa (e devia estar mesmo). O Chefe de Protocolo enviou à técnica gestos imperativos para que ela o acompanhasse na retirada, ela abanou a cabeça e os braços numa negativa, apontando para cima e delineando mais palavras com os lábios. Serra insistiu, mas começou a ponderar as vantagens e desvantagens de se ir embora mesmo sem a técnica, cujos gestos continuavam a indicar que iria ficar ali. Ir-se simplesmente embora não era coisa de um homem apaixonado, mas... bem... a verdade era que melhor seria viver sem a Grandelasca do que morrer com ela.

E assim, o Chefe de Protocolo Serra acabou por abandonar a Grandelasca e o ET às suas próprias sortes, desatando a correr para a segurança (relativa) do palácio presidencial.

Sem comentários:

Enviar um comentário