segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

27.

ASSIM QUE CONSEGUIU COLOCAR um tecto sobre a cabeça, Serra olhou para trás, para o jardim, onde o dirigível presidencial estremecia, mantendo-se fixo ao solo com dificuldade enquanto o balão procedia a um esvaziamento de emergência, e onde cadeiras começavam a esvoaçar em frente do palco, esbarrando umas de encontro às outras, embaraçando-se umas nas outras, criando pequenas pilhas rodeadas por zonas vazias

Então Serra olhou para cima e compreendeu que tinha cometido um tremendo erro. Procurou os candidatos e os dois presidentes entre as pessoas que o rodeavam, não encontrou nenhum deles, e hesitou, pesando as vantagens e as desvantagens de ir à procura dos políticos na multidão ou lavar deles as suas mãos, não se preocupar mais com tal espécie de gente, e regressar para junto do ET. Acabou por suspirar, encolher os ombros, voltar costas ao palácio e dirigir-se de novo para os jardins. Correu, ou tentou correr, de regresso ao palco, lutando desta vez contra uma ventania violenta que o tentava colar às paredes do palácio, impedindo-lhe o avanço com uma massa de ar que tinha quase a consistência de um muro. Um muro feito de tijolos de ar quente.

A debandada de toda aquela gente, aquele pânico todo, tinha sido parcialmente disparatado. Era certo que a permanência no jardim não teria sido muito saudável para os penteados e para a compostura dos vestidos, mas não teria havido qualquer perigo adicional para quem quer que fosse, à excepção de quem ocupasse uma pequena área próxima do centro daquilo que tinha sido a plateia. Porque a bola de fogo, que estava agora sobre o palácio, já não era uma bola de fogo. Continuava, é certo, a ser uma bola, mas tinha ganho excrescências que despejavam correntes de ar quente de encontro ao solo, e refulgia agora numa cor vermelha cada vez mais baça.

Tratava-se de uma nave atmosférica hoog. A segunda nave hoog que Serra via na vida, depois daquela que depositara o embaixador nos arredores da cidade, no início daquele dia, de uma forma bem menos espectacular do que aquela porque a sua descida de órbita tinha sido feita a pouco e pouco, ao longo de várias voltas ao planeta, dando tempo a que a travagem fosse relativamente lenta e, portanto, se acumulasse muito menos calor no casco. Agora, pelo contrário, a nave parecia ter descido em linha recta até ali, e em alguns minutos apenas, provocando aquele espectáculo assustador que levara à debandada da elite das elites como se de uma manada de gazelas assustadas se tratasse.

Serra pensou que devia haver naquele momento milhões de pessoas a rir às gargalhadas em frente de monitores espalhados pelo mundo inteiro.

E havia mesmo.

Quando voltou a subir ao palco, ofegante, viu que a Grandelasca e o ET se encontravam em amena cavaqueira, protegidos da maior força do vento pela cobertura, e se dirigiam calmamente para a escada oposta, segurando cada um o seu aparelho: a Grandelasca carregava o tradutor automático, o hoog transportava o sintetizador. Serra gritou, tentando chamar-lhes a atenção, mas o barulho era tanto que o seu grito foi atirado para a inexistência depois de percorrer dois ou três metros apenas através daquela atmosfera agitada. O Chefe de Protocolo pôs-se a ofegar, atrás daquele dueto interplanetário e interespecífico, que já descia a escada. Encontrava-se a meio do palco quando um ruído agudo se começou a sobrepor aos demais estrondos, e o vento aumentou subitamente de intensidade, fazendo voar em todas as direcções as cadeiras que antes apenas esvoaçavam, abrindo uma clareira onde uma sombra começava a alastrar. Serra tentou correr com maior velocidade, mas quando reparou que estava a ser empurrado pelo vento para as traseiras do palco, correndo o risco de ser atirado com violência para fora dele, deixou de correr e pôs-se a andar o mais depressa que lhe foi possível, todo inclinado para o lado, tentando fincar bem os sapatos de ténis no chão de plástico. Conseguiu chegar à escada sem problemas de maior, mas aí, com a súbita alteração na pressão que era exercida sobre os pés e as pernas pelo ar em movimento, desequilibrou-se e estatelou-se ao comprido mesmo ao lado do sítio onde o ET e a técnica se protegiam do vento.

Era o que se podia chamar uma entrada triunfal.

Ou, naquele caso, uma saída.

A única coisa boa era que o barulho era tanto que ninguém o ouviu berrar.

Quando ergueu a cabeça, com um sorriso embaraçado no rosto, encontrou um par de olhos frios na sua frente.

— Está bem? — gritou-lhe a Grandelasca, com um esgar desdenhoso.

Serra assentiu e levantou-se.

— Que se passa? Que faz aqui a nave? — gritou ao ouvido da técnica.

— O embaixador vai-se embora — gritou-lhe aquela de volta.

O quê?!

— O quê?!

A Grandelasca encolheu os ombros:

— Diz que se enganou no planeta. Que vinha à procura de um planeta com uma civilização avançada, a iniciar a expansão pelo seu sistema, e que não foi nada disso que encontrou. Logo, deve ter-se enganado.

— Mas somos nós! — berrou Serra precisamente no momento em que o motor da nave se calou, causando o súbito desaparecimento do som e do vento.

O grito reverberou no silêncio, levando os cérebros de não poucas das pessoas que o ouviram à filosófica interrogação: “Quem somos nós?

Eu sei — disse a técnica, na sua voz normal — mas ele diz que não.

Serra virou-se para o hoog.

— Senhor Embaixador, será verdade aquilo que ouço? Vai-se embora? Os ventos vão levar a sua nau para outras terras?

— Sim — respondeu laconicamente o extraterrestre através do tradutor.

— Mas... mas porquê?!

Já me via chegado junto à terra / que desejada já de tantos fora, quando descobri que nela nada há para nós. Esperava encontrar uma espécie cheia de uma suave e angélica excelência, que nos levasse à descoberta de novas águas rasas e com quem pudéssemos trocar mucos, e afinal o que descobri foi uma massa de criaturas de disforme e grandíssima estatura, / postura / medonha e má e a cor terrena e pálida. Pior, criaturas sem líquido nos espiráculos, obtusas, que se deixam governar com alegria pelos piores da espécie, escolhendo-os pelo método mais ridículo que já vi. Criaturas sem linfa, que fogem ao primeiro sopro de vento quente. Criaturas anacrónicas, que falam como se recitassem versos ultrapassados há milénios...

— Isso é do tradutor automático — interrompeu Serra, num acto reflexo, num protesto que não passou de um murmúrio. Mas o ET prosseguia o seu discurso, sem dar mostras de lhe ter prestado a mínima atenção:

— ... e que já deviam ter ficado esquecidos no lugar de onde saem os ventos do tempo.

Tu também estás muito lírico, deixa que te diga, pensou Serra, sentindo crescer dentro de si uma ponta de ressentimento.

— Enfim, criaturas que não têm nada a dar aos hoog. Nem mesmo tecnologicamente. Vocês não são nada do que nós pensávamos, estão em irremediável decadência, já nem têm calculadoras grandes e rápidas, voam naquela porcaria lenta que ali está desinflada e murcha como uma folha de khool...

— Temos outros veículos — interrompeu de novo Serra, tão murmurante e provocando ao ET tanto interesse como há pouco.

— ... estão para aqui inertes, presos aos túneis ancestrais, e nem sequer já abrem as ventosas ao vento das estrelas. Vêem-se em derredor ferver as praias, mas vocês preferem ficar deitados à sombra dos caniços.

O ET fez uma pausa. E depois acrescentou:

— Sim, vou-me embora. Os hoog não querem ter nada mais a ver convosco. Adeus.

O ET pediu o tradutor à técnica, prendeu-o de uma excrescência do seu corpo que, aparentemente, tinha surgido de propósito para recolher o aparelho, e pôs-se a ventosar na direcção da nave.

Quanto a Serra, ficou por um momento onde estava, aparvalhado e sem reacção. Quando reagiu, fê-lo da pior maneira possível.

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